Ushuaia 2012 - Fin del Mundo


El Paro Nacional

Dormi no Hotel El Valle, numa pequena cidade da província de La Pampa chamada General Acha.  Não sei o que esse general achou, mas  aí o nome da cidade argentina: General Acha.

Era quinta-feira dia 22 de novembro de 2012 e eu estava cerca de quatro dias adiantado no meu planejamento.

Na véspera eu havia pernoitado em uma inesquecível cidade que fica logo após Rosário.  Pela manhã antes de sair em direção à General Acha, comecei a pensar em como faria para adequar o meu cronograma/planejamento àquela situação.  Eu já havia agendado para segunda-feira dia 26 a revisão de 70 mil quilômetros na BMW de Neuquén.  Fiz esse agendamento através de vários e-mails trocados quando ainda estava no Brasil, dois ou três meses antes de sair para essa viagem.  Porém, como estava adiantado chegaria lá três dias antes.  Havia a possibilidade de eles não terem condições de me atender antes do dia que havíamos combinado.  Eu precisava então fazer contato com a concessionária a fim de tentar ajustar as coisas.  Pedi então ao recepcionista do hotel para ligar para BMW e tentar alterar, reagendando e antecipando a revisão para sexta-feira 23. Nesse momento soube que dia 26 seria feriado na Argentina.   Pura obra do acaso ter descoberto isso.  O recepcionista me preveniu que dia 26 seria feriado nacional na Argentina, que se eu não tivesse alterado o agendamento não acharia a oficina aberta quando chegasse por lá.  Só aí percebi que se não estivesse avançado no tempo ia quebrar a cara na segunda-feira quando pontualmente no dia 26 chegasse na porta da concessionária em Neuquén.  Normalmente quando saio para uma viagem, verifico as prováveis datas em que vou estar em cada cidade e confiro com os feriados locais.  Passei a fazer isso para evitar eventuais engarrafamentos e principalmente para não enfrentar dificuldade para encontrar vaga nos hotéis.  Lembro-me que certa vez, em uma outra viagem fui "obrigado" a dormir no frio, num cubículo dentro de um curral.  Justamente por falta de vaga nos poucos hotéis de uma pequenina cidade.

Ok, mas como eu fui parar em General Acha?  Como disse, do dia 20 para o dia 21 eu havia
 pernoitado em uma cidade de nome singular, 50km depois de Rosário, após um dia que se revelaria um dia difícil de atravessar, um dia bastante turbulento e carregado de tensão.  
No dia 20, durante o café da manhã ainda em Ituzaingó, vi na TV que havia começado um movimento nacional com a paralisação de todos os serviços, uma greve geral chamada por eles de Paro Nacional.  Realizei em minha cabeça essa nova situação e entendi com imperiosa a missão de conseguir passar o quanto antes de dois pontos principais: as geminadas cidades Paraná/Santa Fé, que estavam 750km distantes de onde eu estava, e a principal e mais difícil meta: passar por Rosário, a 930km de mim.  Pelas imagens que havia visto na TV, eu sabia que certamente a situação nas estradas estaria politicamente nervosa, só não sabia ainda o quanto.

Peguei a estrada e segui no ritmo mais rápido que pude.  Setecentos e sessenta quilometros depois, cheguei nas proximidades da entrada do túnel subfluvial que sob as águas do Rio Paraná interliga as cidades Paraná e Santa Fé.  Havia ali uma anormal movimentação de pessoas, com comportamento nitidamente hostil, inquietas, que não identifiquei se eram civis ou policiais.  Mantive meu trajeto em direção ao túnel em velocidade reduzida, compatível àquela situação.  No meu caminho mais "cicatrizes" que conferiam ter sido uma manhã muito complicada.  O ambiente era nebuloso, o ar estava denso e o cheiro era forte.  Sobre o asfalto, incontáveis montes de cinzas negras revelavam que muitos pneus foram queimados no meio da pista denunciando o que houve por ali mais cedo.  Um pouco mais adiante, seguindo cautelosamente para a entrada do túnel, avistei então grupos de policiais bastante agitados e sem nenhuma sincronia, tentavam organizar a passagem do trânsito entre aqueles malcheirosos montes fumacentos.  Percebi que se tivesse chegado algumas poucas horas antes, provavelmente o resultado de minha passagem por ali teria sido outro.  Na frente do pedágio do túnel haviam mais montes negros de cinzas de pneus.  Dava para sentir o clima incrivelmente tenso e pesado.  Me convenci que estava atravessando um espaço onde mais cedo houve um senhor conflito.  Cruzei o túnel e, deixando-o para trás,  “enrolei o cabo” na direção de Rosário, quase 200 km adiante.  Minha apreensão era a real e inevitável possibilidade de ficar sem a oferta de gasolina.   Essas manifestações são sempre mais fortes e intensas nas grandes cidades.  Eu já estava desde cedo enfrentando dificuldade para abastecer. No trajeto até ali vários postos estavam fechados ou já não tinham mais gasolina disponível para venda.  Naquela manhã, ainda na saída de Ituzaingó já havia enfrentado uma grande e bastante demorada fila no posto de combustíveis.  E, como tenho sempre espaço na minha garupa para meu anjo da guarda, mais tarde não pude deixar de concluir que foi justamente aquela interminável espera na fila para abastecimento em Ituzaingó que me retardou e me protegeu daquele conflito que ocorrera na entrada do túnel subfluvial.  Apesar de Santa Fé ser a capital da província do mesmo nome, Rosário é uma grande cidade, a maior cidade daquela província, e não pude deixar de pensar que certamente a coisa por lá estaria ainda mais pulsante.

Logo que saí do túnel segui para a autopista que me levaria até Rosário.  A estrada que interliga a capital Santa Fé e a metrópole Rosário é excelente, em pista dupla com pelo menos duas faixas de rolamento de cada lado e um imenso canteiro central gramado.  Coisa de primeiro mundo.  Cruzei os quase 200 km daquela via expressa o mais rápido que me foi possível fazê-lo.  Entretanto, quando fui chegando aos arredores da cidade o panorama já me permitiu antever o clima: dezenas e dezenas de caminhões se alinhavam estacionados ao longo de todos os espaços disponíveis e imagináveis: canteiro central,  acostamento, posto de gasolina, numa aparente tentativa de evitar a proximidade com o centro de Rosário.  Certamente porque lá deveria estar o núcleo do conflito naquela província.  Alguns quilômetros adiante a coisa finalmente se apresentou: centenas de caminhões formavam um incrível e surreal mar multicolorido que ocupou toda a extensão da autopista até onde os meus olhos podiam enxergar, obstruindo totalmente a via.  Pensei em parar para pegar a máquina fotográfica e registrar aquela cena com algumas fotos, mas em seguida lembrei que deveria era tentar vencer aquele ponto o mais rápido possível.  Às vezes, por conta de um breve instante, ficamos retidos num semáforo vermelho, ou um elevador que se fecha a dois passos de nossa chegada etc.  Não tinha como correr o risco de ficar preso por lá fazendo companhia àquela infinidade de caminhões.  Eu não fazia ideia se a coisa estava quente, esfriando ou pior: ainda esquentando.  Aos poucos, à medida que me embrenhava naquele mundo de gigantes, fui seguindo pela única passagem que encontrei.  O caminho ia se estreitando até que se reduziu a um fino corredor no canto esquerdo da pista.  Inicialmente fiquei indeciso e inseguro, eu não estava no meu país, era um estrangeiro com as naturais dificuldades de comunicação.  Fiquei alguns segundos hesitando sem saber se deveria seguir ou me juntar à inércia daqueles monstros de aço.  Mas logo percebi que não havia alternativa para mim, eu tinha de tentar.  Apontei a moto para aquele estreito corredor e lentamente fui avançando em primeira marcha.  Avançando, avançando, até que cheguei ao início do estático e inusitado comboio.  Me deparei então com vários manifestantes gesticulando e caminhando numa espécie de "praça" que fora formada entre o início daquele perturbador comboio e dois caminhões de lixo estrategicamente atravessados na pista para impedir a passagem de todos.   Era um bloqueio, um piquete para a entrada na cidade e eu ali, lentamente, vagarosamente passando por eles na maior cara de pau.  Ainda lembro bem do olhar de cada um deles, num misto de quem não estava acreditando na minha audácia junto com a admiração pela moto.  Ora olhavam para mim, ora olhavam para a moto.  Olhavam para mim, "me buscando" dentro de meu capacete numa tentativa de me encarar, mas provavelmente a curiosidade desviava suas atenções e seus olhares e fitavam a moto admirando-a.  Lembro bem das sobrancelhas levantadas e dos olhos arregalados.  O resultado foi uma apoplexia geral e eu fui passando... passando... e passei.


A partir dali eu já tinha entrado na cidade, estava finalmente em Rosário.  Podia sentir a tensão no ar e nas ruas esvaziadas, desérticas.  Cruzei ruas, avenidas, bairros, centro, literalmente sozinho.  A aparência da cidade me remetia à imagem de um domingo em dia de final de copa do mundo.  Ninguém nas ruas.  Na verdade ninguém se atrevendo a estar nas ruas.  Parecia que eu estava fazendo parte daquelas cenas de filmes apocalípticos quando não há mais ninguém nas cidades.  Fui seguindo minha solitária jornada num misto de aliviado, amedrontado e apreensivo.  Segui meu caminho rumo sul e quando estava sobre um alto viaduto que me levaria para a autopista de saída da cidade, lá de cima vi no final de algumas ruas, outros bloqueios como aquele que havia passado.  Me deu vontade de sumir logo daquela "panela de pressão" porém eu ainda tinha de resolver um problema: eu precisava abastecer.  Os postos de Rosário estavam fechados, desertos.  Uns poucos que não estavam fechados havia manifestantes impedindo o acesso.  Lá em Ituzaingó eu havia enchido também o "galão", reservatório reserva que carrego comigo como segurança, o que, somando-se ao que ainda havia no tanque da moto, me garantiria combustível suficiente para me afastar dali.  Mas até onde aquela gasolina me levaria?  Continuei minha marcha quando vi ao longe um posto de gasolina com dois carros da polícia parados.  A aparência era animadora, parecia estar funcionando.  Diminui e fui me aproximando devagar e aos poucos me dirigindo para a bomba de combustível.  Parei ao lado dela e um frentista veio em minha direção...  Fui atendido!!!   Entendi então que a polícia provavelmente estava ali exatamente para garantir os abastecimentos.

Eu já havia conseguido meu intento original que era chegar até Rosário.  Só que situação daquela cidade se assemelhava a uma bomba relógio prestes a explodir.  Eu não queria mais estar por lá se isso viesse a acontecer, eu queria ter maior tranquilidade, queria deixar aquela cidade para trás no meu caminho o quanto antes.  Chegar em Rosário era a minha meta quando naquela manhã saí de Ituzaingó, mas agora eu queria mais, queria era sair dali.  Eram cerca de sete e meia da noite e já estava quase escurecendo, precisava achar um hotel.  Mas teria de ser adiante, após Rosário.  Eu não queria dormir por lá, não sabia como as coisas poderiam estar no dia seguinte.  Na minha cabeça o correto era sair de Rosário e dormir em uma cidade pequena um pouco depois.  Finalmente abastecido de gasolina, perguntei então ao frentista que me atendeu qual a próxima cidade com opções de hotéis para que eu pudesse dormir.  Ele virou para um cara que vestia uma camisa amarela e repassou minha pergunta.  Esse cara, muito agitado e "elétrico", começou a falar um monte de coisas, muito rápido, parecia uma metralhadora rotativa.  Eu entendia pouco, meu espanhol não acompanhava aquela velocidade, mas percebi que ele estava respondendo minha indagação e me orientando (na verdade ele pensava que estava).   Falava muito de uma mulher de nome Cassilda.  Repetia a todo instante o nome dessa mulher.  Me parecia que ele queria que eu a conhecesse ou que só ela teria a informação precisa para o que eu desejava.  Subitamente ele determinou que eu estacionasse a moto e fosse para dentro da loja de conveniências com ele.  Virou para um outro que parecia ser um policial civil, sem farda e que estava com um rádio de comunicação na mão, e falou para ele que eu pararia a moto numa área aparentemente proibida, cercada por aquelas fitas plásticas amarelas e rajadas de preto.  Levantou a fita para que eu pudesse entrar ali, e lá fui eu estacionar a moto do outro lado da fita enquanto ao mesmo tempo olhava para o cara com o rádio como que pedindo autorização para invadir aquele espaço.  Deu para ver que dentro da loja de conveniências havia um grande grupo que parecia estar decidindo alguma coisa, ou votando algo, sei lá.  Era um vozerio danado que dava para se ouvir lá de fora.  Deixei a moto e acompanhei o cara de camisa amarela em direção à porta da loja.  Como naqueles filmes de Cowboy, assim que entramos interromperam o falatório e instalou-se um imediato silêncio.  Todos "mudos" e  nos acompanhando com os olhos.  Eu me limitava a seguir o cara de camisa amarela até que ele parou e repassou para todos o meu questionamento.   Eles então começaram a murmurar entre eles.   Percebi que falavam muito daquela mesma mulher, todos passaram a falar da tal de Cassilda.  Parecia que ela era a única pessoa que iria me trazer a solução.  Só que aos poucos eles foram se exaltando mais do que eu imaginava ser normal e agora já falavam de uma forma que aí sim eu já não entendia mais nada.  Começaram a aumentar o volume de suas falas e em mais poucos segundos já estavam gritando e gesticulando entre eles, confirmando aquele conhecido comportamento "sanguíneo" dos argentinos.  Será que eles estavam brigando?  Discutindo?  Caramba!  Eu só queria o nome de uma cidade para poder dormir.   Fui eu que provoquei aquilo tudo?   Pensei em sair de fininho mas minha moto estava dentro da área das fitas amarelas, precisaria de ajuda para sair de lá.  Alguém teria de levantar e segurar a fita para eu sair.  E os caras ali, gritando e gesticulando, aparentemente extravasando ódio.  Na minha opinião a um passo de sair um tiro, era sem dúvida nenhuma uma briga generalizada.  Repentinamente o cara de camisa amarela, no meio daquela confusão toda interrompe sua frase no meio, vira pra mim e me aponta o dedo me causando um sobressalto.  Aí eu pensei: agora ferrou pra mim, tô morto.  Ele então pergunta se eu queria um café.  Mas como assim?  Eles estavam ali, quase se matando e o cara da camisa amarela quer saber se eu queria tomar um café?  Eu queria era sair logo dali!!!

Havia entretanto um deles que se mantinha indiferente a essa balburdia toda.  Sentado junto da porta, calado e lendo jornal.  Esse não estava participando da discussão.   Ficou todo o tempo lendo seu jornal, recostadão, na maior calma, enquanto todos os outros pareciam querer morder os pescoços uns dos outros.   Ele então de maneira soberba, fria e pausada, sem tirar os olhos do jornal, falou alguma coisa que fez todos pararem instantaneamente.  Houve um imediato silencio.  Mas que durou apenas dois segundos, até o momento em que um deles gritou que eu tinha GPS.  Finalmente, de tudo que eles falaram só o que pude extrair daquele pandemônio foi o nome da cidade para a qual eles diziam que eu deveria seguir: Casilda.  O que eu imaginei antes se tratar de uma mulher, era na verdade uma cidade.  Casilda era o nome da cidade que eles estavam me recomendando.  Antes de sair da loja um deles se interpôs em meu caminho impedindo minha passagem, o que me causou um novo sobressalto.  Então me perguntou se no Brasil há piquetes.  Na hora eu pensei que teria de dizer a coisa certa, não parecia nada interessante desagradar aquele grupo.  Aguardaram em silencio pela minha resposta e diante de minha  afirmativa a vibração entre eles foi alegremente explosiva, quase como a comemoração de um gol.  Então percebi que eles eram piquetes que estavam ali no posto para bloquear os abastecimentos quando certamente foram impedidos pela chegada da polícia. O de camisa amarela foi lá fora comigo, levantou a fita e eu finalmente pude ir embora dali.

Foi assim que fui parar em Casilda, a singular cidade 50 km depois de Rosário.

E por que esse sufoco todo?   Naquela manhã quando eu estava tomando café da manhã no hotel em Ituzaingó, vi que foi declarado esse tal de “paro nacional”.   Algo como (se fosse no Brasil) uma greve geral.  Onde tudo para.   Mas é tudo tudo, tudo mesmo!   E eu lá na pequena Ituzaingó, tentando retomar minha viagem.  Agora num ambiente hostil, sem posto de gasolina, pedágios com cancelas abertas, sem trens, sem metrô, sem ônibus.   Nada!  Piquetes nas ruas para impedir a circulação de trabalhadores aos seus ofícios.  Nada de caminhões entregando mercadorias etc.  Na verdade me pareceu que os caminhões foram os principais alvos.   Eles então aparentemente nem se aventuravam mais pelas estradas.  Pelo menos foi essa a "tradução" que eu fiz daquela marcante imagem de centenas deles parados na chegada a Rosário.


Mas por que naquela manhã eu estava em Ituzaingó?  Se voltarmos ainda um pouco mais no tempo, um dia antes eu havia saído 
da casa do amigo Amir em Santa Helena-PR (onde pernoitei) vindo da 7a CNIBR que aconteceu em Bonito-MS e que foi o motivo de eu fazer esse "parêntese" em minha viagem.  Na verdade eu já estava há pouco mais de um mês na estrada, lá pelas cercanias de Viña Del Mar, na costa chilena do Oceano Pacífico, depois de ter cruzado a região do Atacama quando então fiz essa interrupção momentânea e voltei ao Brasil para estar presente na CNIBR do Brazil Rider's.  Agora estava tentando retomar a viagem, retornando para aquele país a fim de continuar meu roteiro de aventuras pela América do Sul.   Eu já havia saído de Santa Helena naquela manhã com a intenção de “enxugar” um pouco o tempo dedicado ao trajeto até Neuquén, cidade em que faria a tal revisão da moto.  Só não imaginei que as circunstâncias iriam me fazer "enxugar" tanto, chegando em Neuquén quatro dias antes do que havia planejado.

noticiário informando o "paro nacional"
Pukara de Quitor em San Pedro de Atacama

caminho para SONCOR
arte na montanha do deserto do Atacama
cabañas em Taltal
mirante do Aconcagua



Puente del Inca
dique de Potrerillos quase seco.  Aqui se represam as águas do degelo das montanhas e abastecem a cidade de Mendoza
Luján de Cuyo - próximo a Mendoza
por do sol em Miramar - Mar Chiquita
monumento ao Índio - caminho pata Tafí del Valle






General Acha

Amanheceu um lindo dia de sol em General Acha.  O fim de tarde do dia anterior havia sido bastante sombrio e chuvoso.  Vibrei por trás dos vidros da janela do meu quarto no Hotel El Valle quando abri os olhos e vi tudo iluminado pelo astro rei.  Previ ali uma travessia tranquila pela Ruta del Desierto, parte de meu caminho para aquele dia.  Na véspera, lá na inesquecível cidade de Casilda, comentando meu trajeto com um frentista de um posto de gasolina, fui advertido por ele que a travessia dessa estrada não é para se fazer sozinho pois é “una ruta muy desamparada”.  Mas não havia escolha para mim, desde de que retomei minha aventura depois daquela interrupção para ir à Bonito-MS, que a viagem passou a ser uma aventura solo.  E pior: como no final do dia anterior o tempo havia "fechado", pensei que iria cruzar a Ruta del Desierto não apenas sozinho, mas sob chuva.

No dia anterior assim que cheguei ao hotel em General Acha logo começou a chover e a temperatura "despencou".  Até comentei com o funcionário do hotel que provavelmente eu iria percorrer a Ruta del Desierto debaixo de chuva no dia seguinte.  Na verdade fiz esse comentário com o recepcionista, assim como que para testar qual seria a reação dele diante da informação de que eu iria fazer a travessia de moto e sozinho.  Ele se limitou a levantar as sobrancelhas, contrair os lábios e inclinar a cabeça assim um pouco de lado.  Mas ao contrário do que imaginamos o dia amanheceu claro e brilhante.
Tomei meu café da manhã (duas media lunas e café puro) e fui botar a bagagem na moto.  Claro que nem tudo poderia ser perfeito: o carioca aqui viu sol então saiu de camiseta do hotel achando que estava em Copacabana.  Quase virei uma daquelas esculturas de gelo.  Lá fora estava muito frio.  Não sei dizer "quanto" estava, mas tava gelado.  Fazia um sol brilhante, mas também um frio muito intenso.
Paguei o hotel e fui abastecer a moto para poder cumprir minha quota diária.  Já de cara percebi nos funcionários do posto olhares atravessados e murmúrios.  Comecei a ouvir reclamações do jogo que acontecera na noite anterior.  Naquela noite o Brasil ganhou, no La Bombonera, o Superclássico das Américas.  Venceu a Argentina nos pênaltis.  Tudo que os argentinos não queriam ver naquele dia era eu, um brasileiro.

Finalmente rodando sobre asfalto, iniciei o projeto do dia: seguir até Neuquén.  Aos poucos, a cada km rodado, o frio foi aumentando e fui paulatinamente fechando as aberturas da roupa de proteção.  Essas aberturas são feitas exatamente para propiciar a circulação do ar em seu interior, mas naquele instante eu não queria que o gélido ar externo viesse tomar o lugar do ar no interior da roupa, que já estava comodamente mais próximo da temperatura desejada por mim.  Depois de tudo já mais que fechado, chegou a vez do velcro do punho.  Ajustei o mais que pude para evitar entrada do vento pelas mangas da jaqueta.  Poucos quilômetros depois tive de parar no acostamento para pegar na mala de tanque uma proteção para o pescoço.  Eu só pensava: Tudo bem, eu sei, eu já estou na Patagônia, mas se aqui já está assim imagina como vai ser lá pra baixo...


Por falar em Patagônia, na véspera quando eu vinha pela estrada e entrei na província de La Pampa, vi uma placa de “Bienvenidos a Patagonia Argentina”.  O clima estava quente, até meio abafado.  Havia um vento constante que vinha da esquerda, mas que apesar de  vigoroso não ajudava a melhorar em nada a sensação de abafamento.  A estrada vazia e eu ia a uns 130km/h.  Lembro que pensei, me referindo ao clima: "se isso aqui já é Patagônia, então vai ser moleza...".  Baixei os olhos para o painel da moto e procurei a indicação da temperatura ambiente: foi só o tempo de ler 32,5ºC e levar uma passarinhada pela cara.  O coitado do bicho explodiu na viseira do capacete!  Imagina o tamanho do susto que eu levei.  Foi só trocar a cueca se seguir adiante...


Olhando para o horizonte vi que o tempo estava fechando lá para os lados da direita.  Sabia que mais adiante, 
nos arredores de Santa Rosa, eu iria deixar a Ruta 5 e virar para esquerda na Ruta 35.   Fiquei na torcida para isso acontecer antes da chuva me alcançar.  Eu ia daqui e a chuva vinha de lá, assemelhando-se a uma situação que no "mundo náutico" chamamos de Rota de Colisão: marcação constante e distância diminuindo.  Seguimos assim por mais uns trinta minutos quando então finalmente nos encontramos, eu e a chuva.  Ela chegou mas não molhou.  Eram pingos de chuva seca.  Sabe aqueles pingos secos?  Não?  Nem eu, mas eram assim, não molhavam.  Era o negócio mais esquisito que já vi, caia na viseira e escorria, mas era só.  Nem a pista ficou molhada.  Comecei a achar que eu estava alucinando, olhei para os poucos carros que vinham em sentido contrário e vi que estavam com o limpador de pára-brisas ligado.  Mas eu não me molhava.  Acho que fumei um cigarrinho do demônio sem perceber porque juro que era assim: pingo seco!

Finalmente virei na Ruta 35, a tal estrada à esquerda que liga Santa Rosa à General Acha.  Aquele vento lateral que me acompanhou o tempo todo, não permitindo que eu me esquecesse dele, converteu-se então num vento frontal.  O "cara" era feroz!  Para conseguir me manter a 120 por hora naquele contravento, a moto fez 12km/l, uma média de consumo de combustível muito acima do que seria o natural.  Seguia pela Ruta 35 quando observei que as nuvens começaram com uma movimentação bastante intensa, parecia que elas estavam se revolvendo em seus próprios eixos.  Após dez ou quinze minutos do início dessa bizarra "dança de nuvens" o céu rapidamente ficou escuro e pesado.  Ainda faltavam cerca de trinta quilômetros e percebi que o "bicho ia pegar".  Mais uma curva e o asfalto apontou em linha reta para o que parecia ser o único pedacinho do planeta cujo céu ainda não era cinza chumbo.  Havia um pequeno buraco naquela espessa e pesada cobertura e felizmente meu destino parecia ser exatamente sob aquela "janela".  
Cheguei em General Acha e imediatamente escolhi o hotel.  Parei a moto no estacionamento lateral, tirei a bagagem e brrrruuuuummmmm.... depois do estrondo começou a chuva.  
Após um banho restaurador, roupa trocada, fui caminhando jantar num restaurante vizinho ao hotel.  Chovia e a distância entre o hotel e o restaurante era curta, porém dessa vez me molhei com pingos bem molhados, daqueles que pareciam ter um litro cada um.











25 de Mayo

Vale registrar que desde que saí da casa do Amir lá em Santa Helena, passei pelas províncias de Missiones, Corrientes, Entre Rios, Santa Fé, Buenos Aires, La Pampa, Rio Negro e agora Neuquén.  Com exceção de Missiones e Neuquén, a impressão que me deu é que a Argentina não estava afundando só politicamente, mas fisicamente também.  Geograficamente falando mesmo.  Era água por todo lado!  As estradas passavam literalmente como ilhas (ou pontes) no meio de tanta água.  Cercas, pastos, portões de fazendas, tudo dentro d’água.  Havia momentos em que a água vinha até à beira do asfalto, o acostamento era totalmente alagado.  Quando tinha uma elevação a coisa melhorava um pouco, mas logo vinha aquela interminável planície e a água novamente se espalhava.  Foi assim desde Corrientes, só melhorando em Rio Negro.

Intrigante o negócio, parecia que a terra estava afundando...

Assim que saí de General Acha, que fica na província de La Pampa, observei que não havia mais relevo no horizonte, era tudo plano e igual: só deserto.  Você anda, anda e parece que não saiu do lugar.  Teve uma hora, quando eu já estava na Ruta del Desierto que eu mais uma vez pensei que estava sofrendo de alucinações.  Andava, andava, olhava em volta e era tudo igual, nada mudava.  Eu comecei a ficar em dúvida se eu estava mesmo me deslocando ou se a estrada tinha se transformado numa gigantesca esteira ergométrica.  A aparência era de que eu não estava saindo do lugar porque nada em volta mudava, era tudo igual.  Na verdade a única coisa que mudava era a indicação no painel da moto, da quantidade de gasolina que ainda havia no tanque.  Foram mais de trezentos quilômetros sem mudar nada.  O mesmo panorama desértico.  Dava mesmo a sensação de que ou não estava saindo do lugar, ou estava rodando em círculos.  A paisagem era sempre igual e a mesma, há horas.  Uma monotonia incomum que só era quebrada por 
incontáveis carcaças de carros acidentados, e insistentes placas de trânsito com alertas recomendando parar e descansar.

Cheguei ao final da Ruta Provincial 20, a Ruta del Desierto.  Ela desemboca na Ruta Nacional 151 junto à localidade de 25 de Mayo que faz divisa da província de La Pampa com a província de Rio Negro.  Há ali nesse entroncamento um posto de gasolina e obviamente parei para finalmente abastecer moto e corpo.

Acho que todos os argentinos em viagem por aqueles lados devem parar ali naquele posto, porque parecia uma feira livre em manhã de domingo.  E é claro que um brasileiro viajando sozinho de moto, numa moto grande, bonita e bastante carregada de bagagens, não poderia deixar de virar o centro das atrações.  Foi quase impossível sair de cima da moto.  Devem ter sido umas 5480 fotos e umas 8000 perguntas.  Mas as 8000 perguntas sempre divididas entre: de onde sou, para onde vou, quanto custa a moto e quanto corre a moto.  Agora imagina um ser vivente quase “morrente” de sede, tendo de repetir 8000 vezes as mesmas respostas.  E ainda sorrir para as 5480 selfies!  Teve uma hora que eu tive de dizer que se eles não me deixassem passar eu ia urinar na calça.


Foi ruim mas foi bom...

Saindo do banheiro vi que ainda estavam olhando a moto e me chamaram para mostrar um vazamento próximo ao motor.  Percebi que se tratava da minha almofada de gel que mais uma vez se rompeu sujando a moto e minha calça.  Eu uso uma almofada de gel sobre o banco da moto para diminuir o desconforto nas longas distâncias.  É uma almofada comprada em casa de material médico hospitalar.  Creio que é desenvolvida para cadeirantes, não sei bem.  Mas o fato é que ajuda bastante na circulação sanguínea evitando cãibras e formigamentos nas pernas.  Porém, certamente por não ter sido desenvolvida para uso motociclístico, volta e meia se rompe deixando escapar um pouco do gel.  Eu já tive e testei todos os modelos realmente projetados para uso motociclístico, com espuma, com bolsões de ar etc., mas nenhum chegou nem perto do resultado que essa almofada de gel proporciona.  O único problema dela é que se for usada intensamente (como no meu caso), mais cedo ou mais tarde ela vai vazar.  Antes de 
descartar e partir para uma nova, eu vou remendando, remendando, até chegar ao ponto de ter de comprar outra.  De tanto passar por isso, eu já havia desenvolvido uma certa prática para esses reparos e ali mesmo no posto providenciei mais um remendo com uma bisnaga de “La Gotita” (uma espécie de Super Bonder Gel argentina) e uma fita isolante.  Tudo comprado ali mesmo naquele posto.  A aparência da cirurgia na almofada não ficou lá um primor, mas deu resultado.

Logo a seguir, a poucos metros da saída do posto, está a entrada da província de Rio Negro e há ali um controle sanitário semelhante ao que existe para se entrar no Chile, com revistas às bagagens em busca de frutas, orgânicos, sementes etc.  Por sorte fui atendido por um cara que não quis encrencar com o grande volume das minhas bagagens  Antes mesmo que ele perguntasse eu já fui dizendo que era tudo roupa pois eu era um carioca acostumado a 40º na sombra e estava morrendo de frio!  Ele riu e me mandou passar por entre os cones e seguir meu caminho.


Em Rio Negro finalmente começaram a aparecer algumas elevações, ainda bastante moderadas, na verdade eram pequenos relevos.  A lateral da rodovia foi marcada por incontáveis engenhocas daquelas que ficam subindo e descendo aquele “martelão” com cara de cavalo.  Acho que algum tipo de mecanismo de extrair e bombear petróleo.  Mas mesmo assim a água na beira da estrada ainda se fazia presente de vez em quando.  Aí não deu para não pensar que aquele petróleo já ia sair "batizado" desde a origem.




uma pequena amostra da água nos campos.  Em muitos lugares até casas estão submersas





Ajuda providencial

Logo que entrei em Neuquén percebi que sem ajuda não chegaria à BMW Cordasco Austral a fim de deixar a moto para aquela revisão agendada.  Neuquén é uma cidade grande se comparada (em sua maioria) às outras por onde passei.  Infinitamente maior por exemplo que a pequenina General Acha de onde havia saído naquela manhã.  O Sebastian Lopes (chefe de oficina da concessionária) na verdade nunca me passou o endereço da loja nos e-mails que trocamos.  Nem eu lembrei de perguntar.  A título de curiosidade apenas, vale dizer que a Harley-Davidson tem em seu menu do GPS a opção "HD" ou seja: Concessionária HD.  Em qualquer cidade que você esteja, se deseja ir a uma loja da HD é só acionar o GPS que será "levado" até a concessionária mais próxima.  Provavelmente essa facilidade tem muito mais a ver com o tino comercial do que com o lado "camarada" da marca.  Mas sem dúvida me ajudaria muito se na BMW houvesse também essa opção.

Agora eu estava ali sem saber para onde seguir.  Rodando meio que sem rumo passei por um motociclista que guiava calma e lentamente uma Kawasaki Vulcan, que assim como as Harleys era tracionada por correia dentada e não por corrente.  O cara estava vestido com aquele típico uniforme de bancário: calça social, camisa social, sapato social, colete de lã.  Reparei isso porque também vi que tinha nele um outro lado que contrastava muito com essa indumentária "conservadora".  Ele usava um capacete nazista, um cavanhaque daqueles compridos e bicudos, e por baixo do capacete dava para ver que tinha a cabeça raspada e se não me engano usava algum piercing, brinco ou outra coisa do gênero.  Isso me fez pensar que ali estava um motociclista que depois do trabalho assumia seu estereótipo de biker old school.
Mais adiante paramos num semáforo, lado a lado, e tive a oportunidade de perguntar se ele sabia onde era a concessionária BMW.  Depois de uma breve explicação segui com a plena convicção de que ainda teria de fazer a mesma pergunta muitas outras vezes adiante.  Novamente nos emparelhamos no semáforo seguinte quando ele espontaneamente se propôs a me levar até lá.
Chegando lá vimos que a loja estava fechada em virtude do bendito descanso de almoço argentino, quando tudo para.  Eram cerca de duas horas da tarde e só reabriria às quatro.  Agradeci e o cara seguiu seu rumo naquele mesmo compasso lento de quando o avistei momentos antes.  Diante da situação, eu agora estava com duas horas disponíveis para encontrar o hotel que aquele recepcionista lá de Casilda havia feito a reserva para mim após ter reagendado a revisão da moto.  Sabia que o nome da rua do hotel era Tierra del Fuego, fui então falar com um cidadão que passava a pé, e que me pareceu ser uma espécie de guarda municipal.  Perguntei se ele conhecia essa rua.  Depois da explicação, vi que eu estava a apenas uma quadra do hotel!  Inicialmente pensei que mais uma vez havia contado com a sorte para ter ficado num hotel tão próximo da concessionária, mas depois fui "realizando" que certamente o recepcionista lá de Casilda deve ter se preocupado em buscar um hotel próximo da oficina.
Assim, aproveitando o tempo ocioso que havia até o final do descanso de almoço, fui até o hotel, assumi meu apartamento e deixei as bagagens (muitas!!!).  Resolvi então dar uma voltinha pela cidade e pouco antes das quatro já estava parado sob a sombra de uma arvore na frente da concessionária.  Me acomodei na moto; pés no apoio de pés avançado, cabeça no baú traseiro e... apaguei.  Dormi ali, no meio da rua.  Não sei dizer quanto tempo fiquei ali.  Durou até o momento em que ouvi uma voz distante, ao longe, alguém dizendo: “senhor, senhor...”.  Abri os olhos e vi ao meu lado um cara sorridente vestindo uma camisa com a familiar hélice  azul e preta, logomarca da BMW.

Deixei a moto e voltei caminhando para o hotel.  Agora eu estava com uma nova questão: era quinta-feira e só teria de estar em Temuco no Chile na terça-feira.  A distância até aquela cidade era de apenas 500 km.  Eu havia deliberadamente planejado esse percurso reduzido para esse dia porque certamente gastaria tempo nos trâmites fronteiriços.  Eu já conhecia bem a entrada naquele país.  Pode levar alguns minutos ou algumas horas.  Tudo vai depender do movimento na aduana e da boa vontade do oficial de fronteira.  Para se entrar lá há um rígido controle com vistoria das bagagens.  Muitas vezes eles elegem apenas um dos compartimentos para serem inspecionados.  Porém há vezes que é preciso retirar toda a bagagem, item por item, que só depois de checados poderão ser novamente reorganizados na moto.  É sempre uma incerteza o tempo que pode se levar nesses trâmites.
Mas como sabemos, eu estava adiantado no meu planejamento.  Teria então cinco dias para serem preenchidos, e sabe Deus como e onde.  Decidi então que só sairia de Neuquén no sábado.  Minha moto iria ficar pronta na sexta-feira final da tarde então eu a pegaria no sábado.  Só aí já gastaria dois dos cinco dias.
Fui então conversar com a recepcionista do hotel e expliquei minha situação de adiantamento no meu cronograma.  Disse a ela que estava pensando em quando saísse de Neuquén seguir para Zapala, uma cidade próxima e que já me deixaria na cara do gol para a aduana.  Mas ela me desaconselhou, dizendo que eu iria ficar três dias numa cidade que não há nada para fazer pois Zapala não é uma cidade turística.  Ela me indicou Villa Pehuenia, uma pequena e pitoresca vila cercada por vários lagos.  Gostei da ideia e novamente solicitei a ajuda dela para isso.  Ela então fez algumas ligações para tentar reservar algo para mim e finalmente achou em Moquehue, uma pequeníssima localidade vizinha à Villa Pehuenia.  Estávamos num fim de semana concorrido, com feriado na segunda-feira (aquele da revisão do dia 26, lembra?), o modelo argentino dos feriadões brasileiros.

Era 23/11/12, minha moto ficou pronta da revisão de 70000 km.  Não fui buscar porque no hotel que estava não tinha garagem.  Deixei para buscar no dia seguinte quando deixaria a cidade.  Mas fui na BMW Cordasco Austral acertar as despesas e foi a metade do que paguei um mês antes na revisão de 60000 km na concessionária Berlin Motors em Yerba Buena em Tucumán.  Saí com aquela sensação de quem havia sido "roubado".  E pior, roubado por um argentino!


Caminho para Villa Pehuenia

Saí de Neuquén sábado 10h, sabendo que iria encontrar cerca de 100 km de rípio para chegar a Villa Pehuenia, meu destino do dia.  Para quem não sabe o rípio é uma espécie de cascalho, mais ou menos como aqueles pisos em pedra brita, muito usados no Brasil em estacionamentos externos (ao ar livre), só que o rípio é composto por pedras mais arredondadas.
O caminho segue tranquilo pela Ruta 22 até Zapala. Depois, através da Ruta 13 até Primeros Pinos.  É todo asfaltado.  A partir desse ponto começa então o rípio.  Minha moto estava com muito peso de bagagem e os pneus que estava usando eram 100% para asfalto.  O traseiro então bastante gasto, quase liso, apesar da ajuda ímpar dos amigos do Brazil Rider’s do oeste do Paraná, Amir, Sampaio e Elói Gambá que providenciaram uma "gambiarra" nos moldes de "pit stop" de Fórmula 1 na minha saída de Santa Helena.  Vale aqui fazer uma breve explicação: quando interrompi a viagem e voltei do Chile para ir à CNIBR em Bonito, já vim com o pneu traseiro bastante "comprometido".  Quando meus amigos viram o estado do pneu, providenciaram um outro "meia boca" para que eu pudesse chegar até Osorno no Chile.  Os pneus teriam de durar até Osorno.  Inclusive os caras da BMW de Neuquén queriam anotar na minha ficha que foi identificada a necessidade de troca dos pneus e eu não aceitei trocá-los.  Ou seja: eu não estava com o equipamento ideal para aquele piso que iria enfrentar.  Mas havia um motivo real e justo para que eu não autorizasse a troca ali na revisão.  Durante a fase de planejamento da viagem, ainda no Brasil, havia feito contato com a MotoAventura, concessionária BMW de Osorno, agendando a troca dos pneus para a ocasião em que passasse por aquela cidade.  Eu havia reservado um tipo de pneu que não é comercializado no Brasil ou na Argentina, não teria como comprá-los antes de chegar ao Chile.  
Eu ainda teria muitos quilômetros de rípio pela frente, mas também muitos mais em estradas asfaltadas.  Os pneus para utilização no rípio que são comercializados no Brasil e na Argentina se deteriorariam muito rapidamente no asfalto.  Esses que encomendei no Chile não.  São pneus alemães, Heidenau Scout K 60, próprios para uso misto.  50% off road e 50% asfalto.  Assim, meus atuais pneus teriam de "aguentar" até a minha chegada na MotoAventura em Osorno.

Logo que passei por Primeros Pinos deixei o asfalto e entrei no trecho de rípio.  Segui com a cautela necessária e tudo foi correndo como esperava.  Por vezes a moto dava uma escorregadinha mas nada que chegasse a assustar.  Pelo menos não muito...  Seguia cautelosamente, em velocidade reduzida, de forma que de vez em quando era até ultrapassado por algum carro.  Depois de algum tempo “peguei a mão”, identifiquei mais ou menos o comportamento da moto naquelas condições e ganhei mais confiança.  Comecei então a andar um pouco mais rápido do que no início.  Ao contrário do que vinha acontecendo, agora eu comecei a ultrapassar aqueles poucos carros que haviam me ultrapassado.  Sei que normalmente, por experiência própria, é aí que as coisas inesperadas acontecem.  Lembro-me de uma vez em que eu estava numa prova de Enduro de Regularidade em Nova Friburgo, cidade serrana do Rio de Janeiro, quando cheguei em um ponto de extrema dificuldade causada pelas chuvas dos dias anteriores àquela prova.  Isso provocou um enorme engarrafamento de pilotos que penavam para vencer aquele obstáculo.  Nas provas de regularidade não ganha o que chega primeiro, mas o que se mantém dentro da média estipulada pelos organizadores.  A largada da prova não é como numa corrida em que todos largam juntos, todos ao mesmo tempo.  Nesse tipo de prova, cada piloto larga após um determinado intervalo de tempo contado a partir do que largou antes dele, de modo geral 30 segundos.  Existem postos de controle em vários pontos da trilha.  Esses controladores vão cronometrando e anotando numa planilha o momento exato em que você passa por ele, anotando seu número, hora, minuto e segundo.  Apesar de ser uma prova de regularidade e não de velocidade, normalmente é quase impossível conseguir se conservar dentro da média, isso de modo geral obriga o piloto a ir numa velocidade difícil de ser sustentada.  É muito árduo para cada um se manter dentro do seu tempo ideal.  Aquele ponto, que normalmente já seria um ponto de dificuldade, após as chuvas havia se transformado numa tarefa hercúlea e estava afastando todos de seus próprios tempos.  Assim que me desvencilhei daquele amontoado de gente e motos e enfim consegui passar pelo obstáculo, comecei a correr atrás do tempo perdido.  O piso ali dentro daquela mata fechada já é normalmente bastante liso, mas em virtude das chuvas dos últimos dias estava um "verdadeiro sabão".  Porém eu fui aos poucos "dominando" aquelas condições.  Eu havia "pegado a mão" o que me permitiu ir acelerando cada vez mais, deixando para trás todos que encontrava no caminho.  Consegui estabelecer um ritmo incrivelmente acelerado para aquelas condições.  Comecei a achar que conseguiria voltar para "meu tempo".  Lembro-me muito bem do momento em que pensei, ali dentro do meu enlameado capacete: "-cara, to mandando muito!!!"  A moto ia escorregando quase como gelo sobre vidro e eu não estava nem aí, seguia mandando ver e controlando a "bicha".  Eu seguia num ritmo alucinado fazendo as curvas praticamente de lado, a traseira da moto querendo passar a frente da moto.  Até que...  sempre tem um "até que".  Até que numa dessas escorregadas, a traseira da moto subitamente recuperou a aderência e converteu minha moto numa catapulta.  Eu me transformei naquele homem bala que nos circos antigos era projetado por um enorme canhão.  Voei por alguns segundos até me reencontrar com o planeta terra.  Resultado: duas costelas quebradas, lábio superior parecendo um balão e um enorme hematoma na testa sobre o olho direito.  E não consegui voltar para o "meu tempo".

Tudo ia bem, eu seguia tranquilo e muito confiante na minha perícia imaginando ter completo domínio sobre a situação.  Rodar sobre aquele rípio já era agora uma "tocada" fácil.  Eu não fazia ideia, mas faltavam menos de trezentos metros para me reencontrar com o asfalto quando numa descida surge uma longa curva toda em areia.  Sabe aquela areia fofa, solta sobre um piso duro, bem socado?  Não sabe?  Eu sei, agora mais do que nunca eu sei.  E sei de perto, bem de perto.  Nem deu pra ver o que aconteceu, quando vi estava me esparramando e deslizando pelo chão.  Foi súbito, repentino, sem aquele costumeiro momento em que você sente que vai pro chão e pensa: "ihhh, f...".  Foi muito estranho, acho que perdi a frente da moto, sei lá.  O mais estranho foi que ela caiu para dentro da curva e não para fora.  A curva era para direita e eu cai com o lado esquerdo voltado para o chão.  Muito doido o negócio.  Acho que a moto perdeu aderência escorregando pelo próprio peso na natural inclinação do piso da curva (para dentro).  Seria normal, numa curva para direita com a moto "deitada" para direita, que numa eventual escorregada por falta de aderência a queda ocorresse com o lado direito da moto voltado para o chão.  Mas nessa não, apesar de ser curva para direita foi o lado esquerdo que ficou em contato com o piso.  Só sei que me arrastei pelo chão, descida abaixo, por cerca de 10 metros.  Creio que devia estar a uns 60 km/h, não mais que isso.  Mas foi o suficiente para deixar uma marca de uns 10 metros no chão.  No final a moto rodou 180 graus e ficou ali deitada de frente para o sentido contrário, virada para o lado de onde eu vinha.  Como era no meio de uma longa curva fiquei com receio de vir um carro e nos acertar, eu e a moto.  Apesar do belo tombo eu estava bem, não sentia nada, mas era preciso sair logo dali.  A agonia de ter caído e a pressa de sair dali me impediram de lembrar de tirar fotos da situação, uma pena.
Tentei levantar a moto e tudo que consegui foi uma fisgada na minha lombar.  A moto nem se mexeu.  Me posicionei de novo e nova tentativa: outra fisgada ainda maior.  Vi então que só havia duas alternativas: ou eu esperava alguém passar para me ajudar ou teria de esvaziar toda a bagagem da moto para tentar levantá-la.  Optei pela primeira e após uma razoável espera surgiu uma pickup 4x4 branca para a qual fiz sinal.  O cara parou o carro e veio tentar me ajudar, mas não havia onde segurar na moto, era tudo bagagem.  Orientei a ele que tentasse pelo baú traseiro que eu tentaria pelo guidão e banco.  Tentamos uma vez e a moto escorregou, deslizando sobre o piso permanecendo deitada como estava e não subiu nem um milímetro.  Nova tentativa e a mesma coisa, a moto arrastava sobre o piso coberto pela areia mas não subia.  Vimos então a esposa dele sair de dentro do carro e vir em nossa direção numa clara intenção de se unir à nossa “força tarefa”.  O cara então pegou uma pedra no canto da estrada e pôs na base do pneu traseiro e pediu à mulher que pisasse na pedra.  Nova tentativa, a moto foi subindo, subindo, e finalmente subiu no mesmo momento em que minha lombar "detonou".  Puxei o descanso lateral da moto com a mão e tentei baixá-la de volta para a esquerda a fim de apoiar a "bicha" no mesmo.  Quanto mais força eu fazia para a esquerda mais força o cara fazia para a direita achando que a moto estava voltando para o chão.  Eu tentava descer a moto para o descanso e ele fazendo força para o lado contrário.  Eu já estava vendo a hora da moto dessa vez cair para o outro lado.  Eu dizia: "para cá, para cá!!!!"  E o cara fazia força para lá.  Até que a mulher dele entendeu e disse a ele o que fazer.  Voltei então a ver minha moto de pé, solta, sozinha apoiada no descanso lateral.  O cara foi embora com meus sinceros e profundos agradecimentos e eu fiquei ali, olhando para a moto com as mãos na lombar.  Acho que minha posição arqueado para frente com as duas mãos apoiadas nas costas fazia lembrar o “Véio Zuza”, um antigo personagem do comediante Chico Anísio.
Subi na moto e fiz a volta pois meu destino era no sentido oposto ao que ela apontava.  Mesmo para fazer a volta a coisa foi complicada e difícil.  Eu ainda estava nervoso, cansado e "travado" pela situação da minha lombar.  Lembro-me que naquele momento ali, ainda parado sobre a moto, tão distante de casa me senti impotente, frágil, desamparado e extremamente solitário.  Parecia para mim que eu era o único habitante do planeta.  Percebi que além de fisicamente abatido estava também psicologicamente abalado.  Aquele foi um instante muito marcante para mim...

Estava realmente muito solta e espessa a camada de areia sobre a pista.  Devagar, com cautela e com os pés ajudando pude sair daquele ponto e terminando a curva em menos de 15 segundos estava no asfalto.
Momentos que ficam para serem lembrados, contados e virarem histórias...

O lugar era realmente fantástico.  Bendita recepcionista que não me deixou ficar em Zapala.  Deus fez essa parte do mundo num momento de muita inspiração.  O céu estava totalmente azul e o sol muito brilhante.  Lagos de águas intensamente azuis, cercados por montanhas nevadas e muita vegetação com variadas tonalidades de verde.  Paisagem de cartão postal e cenário de filme romântico.  Só que agora eu estava naquele paraíso porém ilhado pelo rípio e com a moto nas já conhecidas e impróprias condições para aquele tipo de piso.  Em Villa Pehuenia há asfalto, mas só lá.  Todo o entorno e acessos são de rípio.  Minha escolha era muito rípio ou pouco rípio.  Parece óbvia a resposta, mas é que o rípio mais curto é também o menos “tratado”, e o mais longo é o mais “conservado”.  Esse mesmo que passei para chegar até lá era tido como “extremamente conservado”.


Tinha a troca de pneus previamente agendada (desde setembro) para quinta-feira em Osorno.  Junto com os novos pneus certamente viria a esperança que a troca me desse melhores condições para rodar sobre o rípio.  Principalmente porque naquela época do ano chove o tempo todo em Ushuaia.  E pegar rípio debaixo de chuva, com a moto pesada e pneu impróprio seria masoquismo demais...


Ok.  Eu agora estava em Villa Pehuenia, mas tinha ainda de seguir para Moquehue onde está o hotel que me foi reservado.  Fui seguindo pelo asfalto aproveitando cada centímetro do mesmo, como se fosse o último pedaço asfaltado das Américas.  Pensava enquanto andava, como o equipamento pode fazer tanta diferença.  Esse piso que me derrubou eu passaria com “os pés nas costas” se estivesse com minha moto de trilha.  Porém nessa moto, com esses pneus e assim tão carregada, foi uma dificuldade.  Meses antes de iniciar essa viagem, estive em outra aventura dentro do território brasileiro.  Depois de visitar amigos em Brasilia, subi para o Tocantins e fui ao deserto do Jalapão.  Lembro-me bem das dificuldades que passei para manter o controle do meu pesado conjunto naquele "areião" todo na chegada a Mateiros.  Por algumas vezes fui "humilhado" por quem (sem dificuldade) passava por mim de Honda Bros.  Há ocasiões em que a habilidade não basta, o equipamento faz toda a diferença.  Por melhor mecânico que você possa ser, tenta tirar um parafuso de fenda com uma chave Phillips...

Seguia pelo asfalto em busca de Moquehue, quando adiante me deparei com a aduana argentina.  Cones estavam sobre a pista bloqueando e impedindo a passagem.  Um militar da Gendarmeria me atendeu e eu então lhe expliquei que não iria sair da Argentina ainda, só daqui a alguns dias, que naquele momento estava apenas querendo ir para Moquehue.  Ele me orientou que a estrada que levava à saída para o Chile estava no meio do meu caminho para o hotel, mas que eu teria de voltar na aduana quando fosse finalmente sair para aquele outro país.  Pediu para ver meu passaporte e desejou buen viaje.  Antes de sair perguntei a ele se seria asfalto até lá e ele respondeu: 18 km de rípio.  Para quem já tinha rodado 92km, com “maestria e acrobacia digna de Cirque du Soleil”, completar mais esse percurso não seria nada demais.


Moquehue

Assim que cheguei pude ver que na verdade o hotel era uma casa de fazenda.  O lugar era lindo.  Gelado porém lindo.  É, muito lindo... mas é gelado.  Mas é gelado gelado mesmo.  E bota gelado nisso!  Ambiente acolhedor, lareira acesa o tempo todo mas mesmo assim: gelado.
A senhora que me atendeu me levou escada acima e me apresentou meu quarto.  A primeira coisa que procurei ver foi se tinha cobertores na cama.  Isso mesmo, no plural: cobertores.  Eu queria me garantir, vários, muitos, montões de cobertores!  Ela mostrou que havia aquecimento a gás ao lado da cabeceira da cama e isso me tranquilizou um pouco.  Disse-me que já iria ligar para ir “temperando la habitacion”.
Claro!  Não deu outra!  O treco estava com defeito!  Ela desceu e subiu as escadas umas cem vezes, cada vez com uma ferramenta diferente na mão.  E eu com medo que aquele negócio explodisse pois não era elétrico, era a gás!  No final de inúmeras tentativas ela murmurou que necessitava de ajuda e finalmente abandonou a faina.

Tomei meu banho e eram cerca de cinco da tarde quando desci para o salão onde havia uma lareira.  Escolhi a mesa e o lugar mais próximo ao fogo.  Jantei ali mesmo e fiquei por lá até meia noite e trinta.  Quando subi olhei para o aquecedor e vi que o treco estava aceso e chegando bem pertinho dele deu pra perceber um pequeno aquecimento.  Mas o negócio era muito fraco.  Não dava nem pra saída, estava longe de atender às necessidades deste carioca friorento.  Entrei sob as cobertas e só fui me mexer pela manhã para levantar e sair da cama.  Naquela noite eu não dormi, na verdade eu desliguei.  Acho que acordei na mesma posição que deitei...


Dia seguinte no café da manhã uma surpresa: não haviam medias lunas!  Mas apesar de um pouco mais "favorecido" a matéria era a mesma: o argentino e econômico desayuno de sempre.  Uma cestinha com algumas fatias de pão (a mesma que na véspera fora colocada na minha mesa de jantar a guisa de couvert), um pires com manteiga, outro com uma espécie de geleia, um bule com café e a xícara.


Depois de tanta "fartura" (não sei como não tive uma indigestão!), fui "lagartear" ao sol do lado de fora na varanda da frente.  Olhando a vida passar, cheguei a conclusão de que aquele lugar é uma espécie de hiato no tempo.  Na rua de rípio em frente à Hosteria La Bella Durmiente (o hotel onde eu estava), não havia movimento.  Passaram alguns poucos carros durante o tempo em que fiquei por ali.  Quase todos carros antigos porém ainda muito novos e conservados, como se ainda estivéssemos na época deles.  Os hábitos por lá também são outros.  Não há nem internet nem tv no hotel.  Nem celular funciona.  Enquanto pensava isso, sobre esse hiato no tempo, como que para consolidar essa minha tese, passa tranquila e lentamente um antigo e emblemático Alfa Romeo 2000, carro que teve a nossa versão brasileira, o FNM JK.  Veículo do início da década de 60.  Foi como uma viagem ao passado.  Realmente muito legal.


Entretanto volta e meia eu me pegava pensando em como sair daquela ilha terrestre: um pedaço de terra cercado de rípio por todos os lados.  Minha melhor opção ali era o Paso de Icalma, com 55 km de rípio.  O nome desse passo já é bem sugestivo: I... calma...


Eu não queria deixar a região sem dar uma volta para tirar fotos e conhecer um pouco o lugar.  Mas também não queria ter de vestir todo o traje de cordura só para isso, e qualquer outra roupa ficaria imunda de poeira.  Eu tinha na minha memória a lembrança bastante viva de uma vez que estive na cidade de Alto Paraíso de Goiás, na Chapada dos Veadeiros, quando depois de instalado e de banho tomado fui conhecer a famosa Vila de São Jorge.  Só que a estrada de ligação para se chegar até lá é um caminho de terra de cerca de 50km.  Naturalmente eu me transformei num "Bruno à milanesa".

Perguntei então à senhora Sonia (dona da hosteria), se havia um carro para alugar ou um taxi ou um serviço parecido.  Questionado por ela revelei minha intenção.  Ela então meio que murmurou alguma coisa, assim como um pensamento alto, que entendi ser algo que dizia que ela iria me levar.  Voltou-se então para mim e perguntou se poderia ser mais à tarde.  Concordei com tudo e quando foi lá pelas três da tarde, quando estou novamente lá fora lagarteando, ela me grita em tom meio que cantado: “estoy lista!”  Ou seja: “estou pronta!”.  Olhei para ela e vi que estava em pose holywoodiana, assim meio de lado, meio de costas, me olhando um pouco por cima do ombro, com uma das mãos na cintura e com uma das pernas um pouco dobrada tocando o chão somente com a ponta do pé.  E ainda usava um chapéu redondão com grandes abas, que também só tinha visto na cabeça das mulheres daqueles filmes americanos antigos.  Pensei comigo: “essa não... será?”




aqui acabou o asfalto e começou o rípio













difícil sair de perto da lareira


Tour particular

Depois de nos instalarmos no carro, a senhora Sonia iniciou um tour pelos locais que reputava como os mais interessantes.  Foi até bom ir com alguém que conhece o lugar pois já vai na parada certa evitando “passeios” errôneos naquele rípio infernal.
Vimos coisas realmente incríveis.  Uma delas foi um conjunto de rochas formando um tipo de paredão, com erosões naturais porém obedecendo padrões com uma simetria tão apurada que pareciam feitas pelo homem. Vimos também uma montanha de rocha que está (segundo ela) “se erosionando”.  Esta rocha está se desmanchando (aparentemente de dentro para fora) e com isso se formou uma espécie de rio de pedras.  Ela disse que muitas vezes esse “rio” vem até a pista chegando a encobri-la impedindo a circulação.  Os moradores e o serviço público do local usam essas pedras para compor a camada de rípio das vias por onde passamos.  Vimos também belas paisagens à beira dos diversos lagos da região: os lagos MoquehueAluminéPoicahuePulmariÑorquinco e Pihue.  É realmente um lugar que merece dedicar-se muito mais tempo para tentar se esgotar as atrações locais.

Na volta para o hotel, o natural sossego foi quebrado.  Começamos a nos deparar com várias motocicletas vindo em sentido contrário.  A senhora Sonia não entendia o motivo de tanto movimento mas eu logo vi que se tratava de algum tipo de competição pois todas as motos tinham números aplicados nos locais próprios.  Elas passavam em grupos, aos montes de cada vez.  A certa altura chegou a ser impossível continuar devido a tanta poeira que as motos levantavam, fomos obrigados a parar o carro.  Já eram dezenas delas em cada uma dessas ondas, e todas elas BMW.  Com atenção pude identificar o emblema do GS Trophy South America 2012
 numa delas que passou mais lentamente.  Estava então explicado o motivo de tanta bagunça: estávamos dentro (e em sentido contrário) do circuito off road de uma competição motociclística internacional, o BMW GS Trophy South America 2012.

O dia seguinte chegou e era o dia de seguir viagem.  Tudo arrumado na moto, hotel pago, despedidas feitas, e voltei a Villa Pehuenia para dar a última olhadela na vila.  Foram mais 18 km de rípio até o asfalto, o mesmo caminho por onde já tinha passado dois dias antes.  Passando pelo soldado da Gendarmeria avisei que estivera hospedado em Moquehue e que iria até a vila para só então na volta fazer a minha saída daquele país.  Pela localização do posto de controle não era possível para o soldado saber se eu estava vindo do Chile através do acesso do Paso de Icalma ou de outras paragens ainda dentro de território Argentino, como de fato era o meu caso.  A divisa com o Chile fica a oito quilometros dali.  Cinco quilômetros depois deste controle é preciso dobrar numa estrada para direita e seguir mais três quilômetros até a divisa.  Ou seja: passando pelo soldado você tanto pode seguir em território argentino, ou virar a direita para ir para o Chile.


Dei uma pequena voltinha na vila (também não dá para ser grande devido ao tamanho dela), comprei uma garrafa de água mineral para levar comigo e fui então fazer o trâmite de saída.  Na verdade são sempre dois postos de controle conjuntos: a saída da pessoa (passaporte etc.), e a aduana (controle de bens, bagagens etc.).  Na Gendarmeria foi tudo tranquilo, entretanto na aduana houve uma pequena dificuldade por causa da moto.  O funcionário que me atendeu ficou (ali sentado diante do computador) "batendo cabeça" por um bom tempo.  Ele não encontrava no sistema o local para indicar a saída da moto do país.  Ele então ligou para uma outra pessoa que pelo que entendi o chamou de burro dizendo que para veículos de países do Mercosul não há no sistema o campo para discriminação dos mesmos, a saída é livre.  Ouvi mais uma vez um buen viaje e lá fui eu.



De Volta ao Chile

Exatamente na divisão entre os dois países, Argentina e Chile, termina o asfalto e se inicia o rípio.  Fui bem devagar para não fazer também uma análise quase microscópica do solo chileno como fiz no solo argentino alguns dias antes.  Depois de rodar uns 3 ou 5 km surgiu um pueblo onde está o controle fronteiriço de entrada no Chile.  Esse paso que chama-se Paso de Icalma.  Fica às margens do lago Icalma, que certamente lhe empresta o nome.  Tudo tranquilo na imigração.  Apesar de não ser obrigatório sempre faço uso do passaporte pois abrevia muito o preenchimento de alguns formulários, que são substituídos por simples carimbadas.  Não nos livra de ter de preencher alguns outros, mas com certeza encurta caminhos.  Saindo da imigração, agora o próximo passo era a aduana.  Quando me apresentei o cara pediu o papel de saída da moto do território Argentino.  Argumentei que veículo brasileiro não recebe esse papel por serem (ao contrário do Chile) países integrantes do Mercosul.  Na verdade eu apenas repeti o que o cara da aduana argentina havia dito, então esclareci ao oficial da aduana chilena que essa informação me foi passada na saída da Argentina.  O chileno me olhou e balançando a cabeça negativamente disse: “- esses argentinos...” bateu o carimbo e juntando todos os meus papeis me desejou mais um buen viaje.

Tudo resolvido, agora era hora da inspeção sanitária na bagagem. No Chile são três controles para entrada no país, os dois já mencionados e depois um terceiro onde toda a bagagem é inspecionada pelo pessoal da vigilância sanitária.  Mais uma vez tive sorte pois o cara que me atendeu estava de bom humor e me disse que só queria olhar o “top case”.  Abri ele deu uma olhadela superficial, afastou com as mãos algumas coisas como que para parecer que estava realmente vistoriando e ganhei mais um buen viaje.  Foi então que perguntei a eles por que caminho deveria seguir.  Todos eles já estavam ali do lado de fora admirando a moto.  Eles me disseram que o melhor seria pelo trajeto mais longo, contrariando as informações que havia recebido no hotel em Moquehue.  Como eles são chilenos e a rodovia é deles optei por seguir esse último conselho abandonando a orientação recebida anteriormente.  Cinquenta metros adiante desse controle fronteiriço a estrada terminava perpendicularmente a uma outra, formando um "T".  Só haviam dois caminhos a seguir: um virava para a esquerda, que era o caminho indicado pelo pessoal da Argentina; o outro virava para a direita e era o indicado pelos chilenos.  Com a informação recém obtida de que pela esquerda o trajeto realmente era mais curto porém com muitas curvas e subidas e descidas e o da direita era mais longo porém tratado, optei pelo da direita.  Vim descobrir depois que essa é a estrada que liga o Paso de Icalma com o Paso de Pino Hachado, fronteira esta por onde passaria se tivesse mantido aquela minha ideia original de pernoitar em Zapala como inicialmente havia planejado até ser convencido do contrário pela menina do hotel em Neuquén.

Pois bem: lá fui eu seguindo a estrada de pouco mais de 30 km.  A princípio ela se manteve em boas condições para o trânsito do meu pesado conjunto: piloto e equipamento.   Todo mundo sabe que nesse tipo de piso o ideal é se manter no “trilho” formado pelos pneus da circulação dos carros, pois esse movimento além de compactar o piso tende a retirar as pedras mais soltas facilitando de certa forma o equilíbrio da moto.

Mas como nem tudo acontece como desejamos, de vez em quando a coisa se apresentava, como direi... um tanto fofa.  A camada de pedras soltas ficava mais espessa me obrigando a não desviar nem um pouco do que já não era nem mais um “trilho” mas uma pequena marca de onde os carros provavelmente haviam passado.  E claro, como não podia deixar de ser, exatamente nesses momentos surgiam veículos em sentido contrário.  Isso me obrigava a ceder espaço e abandonar a parte mais compacta da pista.  Numa dessas saídas do “trilho” já não foi possível voltar e mesmo não desejando isso, fui descendo para a parte lateral ficando literalmente atolado sobre a vala que margeava a via.  Era uma vala em nível bastante inferior ao da "pista" e composta por uma profunda camada de pedras soltas.  Com uma moto leve a manobra é simples:  roda dianteira para cima, apontando para o meio da pista, pés no chão e gás na moto que ela sai.  Mas naquele "caminhão" super carregado e com pneu impróprio (e já liso) a situação era outra.  Primeira tentativa: nada.  Segunda: a moto quase foi para o chão, tive de me esticar todo para evitar que ela caísse.  Vi que não dava pra errar pois se ela tombasse eu sabia que só sairia dali com ajuda.  Desativei o controle de tração e tentei mais uma vez.  A moto começou a patinar e cavar dentro das pedras.  Fui então dando um balanço na moto, indo e vindo fazendo ela ficar em sentido diagonal, meio que atravessada, para uma tentativa final.  O perigo dessa manobra é que quando a roda dianteira sobe para a pista, o pé “falta” porque o meio da moto fica longe do chão não sendo possível alcançar o piso com os pés, e se a moto patinar e não subir, é tombo na certa.  Voltei a ligar o controle de tração e fingi que estava na minha Honda CR 250 de trilha e dei gás na moto.  Seja o que Deus quiser...  com um certo cheiro de queimado parei atravessado já no topo da pista.  Havia finalmente saído da vala...

Segui um tanto ofegante e ainda mais alerta (para não usar a palavra assustado).  Subidas, descidas, curvas... tudo aquilo que o cara da aduana me disse que havia na outra estrada não recomendada por ele.  Foi então que pensei:  “se isso aqui é sem curva, sem subida e sem descida, imagino como será a outra estrada...”  Até aquele momento da viagem, de todas as estradas de rípio que havia passado, essa foi sem dúvida a mais difícil.

Depois de mais uns bons quilômetros rodados já seguia mais descansado quando avistei lá longe, após uma sequência de curvas, uma longa reta em subida íngreme.  Tudo isso com o rípio naquela camada mais espessa e solta.  Redobrei a atenção fui seguindo em velocidade baixa porém constante para tentar favorecer a tração da moto naquele terreno.  Pouco depois percebi que um carro iniciava a descida desse retão, bem lá longe. O carro ia descendo muito vagarosamente.  Um pouco mais adiante vi que o carro havia parado no meio da pista e percebi que tinha luzes na capota.  Reconheci ser uma pick-up verde e branca dos Carabineros, a truculenta polícia chilena.  Continuei a subida e quando fui me aproximando deles, a cerca de 300 metros, saltaram e se colocaram na frente do carro, no meio da pista me mandando parar.  Eu pensei: “esses fiduaégua (não exatamente isso) querem que eu pare justamente aqui, no meio da subida?!  Eles não têm idéia do sufoco que vai ser para eu sair daqui depois...".
Obviamente atendi ao comando e parei.  Eles vieram muito sérios, de forma intimidadora,  perguntando quem mais estava comigo.  Disse-lhes que estava só.  Perguntaram de onde era, de onde vinha e para onde ia.  Apertavam com as mãos as bolsas presas à moto e perguntavam o que havia dentro, pareciam nervosos, falavam os dois ao mesmo tempo num comportamento quase agressivo.  Queriam que eu levantasse o banco da moto, perguntaram o que havia em baixo dele.  Disse-lhes que eram só ferramentas e a bateria da moto.  Para ter acesso ao meu banco seria necessário desamarrar a bolsa que estava sobre o banco traseiro (garupa) para ser possível tirá-lo e dar então condições de retirar o meu banco.  Era muito trabalho para ser feito aparentemente por um capricho do policial, sem nenhum motivo real.  Ignorei solenemente.  Mandaram-me abrir as malas para verificar o conteúdo das mesmas.  Eles faziam perguntas umas sobre as outras e davam ordens absurdas como essa de desmontar e expor toda a minha bagagem.  Isso tudo literalmente ali no meio da rua.  Aí eu já achei demais e com a paciência já esgotada foi a minha vez de mudar o tom e falar sério.  Disse-lhes que queria saber por que aquilo tudo pois eu era um brasileiro, um cidadão estrangeiro com entrada regular no país deles e que havia passado por todos os trâmites do controle fronteiriço de Icalma onde a revista já havia sido feita.  O outro policial circundou a moto e foi novamente apertando as malas que estavam do outro lado da moto e perguntando o que tinha dentro.  Disse que eram roupas e já visivelmente irritado insisti em saber o motivo de tantos questionamentos já que a vistoria havia sido feita na aduana de Icalma onde tinha cumprido todos os procedimentos regulares de entrada no Chile.  Então, talvez pela minha postura e inflexível resistência, deram-se por vencidos e desistiram da ideia de me fazer desmontar toda a bagagem ali no meio da estrada e me autorizaram a prosseguir.  Talvez pela minha indignação ante a possibilidade de ter de desarrumar tudo nem me lembrei em que tipo de piso estava e fui imediatamente vencendo aquela subida e saindo dali.  Rodei mais uns 800 metros e cheguei ao asfalto.  Logo avistei à direita o complexo fronteiriço do Paso de Pino Hachado.  
Creio que os policiais estavam achando que eu estaria invadindo o país, pensando que eu teria entrado no Chile por um caminho clandestino, sem passar por controle aduaneiro nenhum.  Como viram que eu insisti muito que havia passado pelo Paso de Icalma entenderam o motivo de eu estar chegando por aquela estrada e não pelo usual caminho asfaltado.  O fato é que finalmente compreenderam (ou aceitaram) e me liberaram para seguir em frente.  O estranho é que não me pediram em momento nenhum a documentação de entrada regular no país deles...

Já no asfalto, como não havia mais preocupação com o piso, pude voltar a apreciar a natureza que ia se modificando ali ao meu lado à medida que avançava pelo país.  Interessante como a vegetação muda completamente quando entramos naquele ponto do Chile vindo do árido topo argentino da cordilheira e descemos para o litoral.   O Chile é um estreito país, confinado entre a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico.

Vale aqui um breve parêntese acerca da característica do acesso terrestre ao Chile que, vindo da Argentina, é quase em sua totalidade feito de cima para baixo.  Com exceção apenas de uma pequena parte do extremo sul do país onde estão Puerto Natales, o Parque Nacional Torres del Paine e a porção chilena da Terra do Fogo que estão do lado oriental da cordilheira.  Descontando-se essa pequena parte, toda a linha divisória entre Chile e Argentina acompanha o cume da cordilheira.  

Apesar da estrada estar no máximo a cerca de 1600 metros de altitude, tem também sua própria identidade.  Nesta parte dos Andes não há vias com a mesma altitude da região do noroeste argentino e nordeste chileno.  Naquela região há por exemplo a Ruta 27 chilena (estrada que no Paso de Jama se conecta com a Ruta 52 argentina), que chega a alcançar os 5000 metros acima do nível do mar.

Fui seguindo e apreciando o caminho quando logo a seguir vejo um aviso de pedágio e um túnel de uma única pista em mão única.  É o túnel Las Raices, com pouco mais de 4,5 km de extensão.  O fluxo do trânsito interno é monitorado por um funcionário que controla dois pequenos semáforos localizados em cada uma das extremidades externas do túnel   Se eu não tivesse ainda um pouco de dinheiro chileno trazido comigo desde quando (já no Chile) fiz aquela interrupção na viagem para voltar ao Brasil e ir à convenção do Brazil Rider's, teria passado sufoco ali com dificuldade para pagar o pedágio.  Mesmo nos arredores das fronteiras, os chilenos são irredutíveis para o exclusivo uso da moeda nacional...
O túnel é uma descida que parece interminável.  Como é um túnel bastante estreito, com um único sentido de tráfego por vez, não dá para se ter a noção do quanto já se andou e tampouco visualizar o final do túnel.  É uma descida escura e muito gelada, esfriando ainda mais à medida que se avança cada metro.  Lá fora estava fazendo cerca de 20° quando entrei.  Já no meio da descida naquele tubo infinito fazia 8° e o frio aumentava cada vez mais.  Até que cheguei ao final e, de volta à luz, vi que uma fila em sentido contrário aguardava minha saída para então subir túnel adentro.

Eu havia feito o pagamento do pedágio meio apressado e senti que o dinheiro estava bem na beirada do bolso da calça, tinha entrado pouco e poderia cair.  Até então era tudo o que eu tinha em moeda chilena.  Como de hábito as pistas chilenas são de excelente qualidade, mas nessa não havia acostamento, não tinha como parar para arrumar a grana no bolso.  Tentei com os dedos empurrar bolso adentro, mas não consegui devido a dobra da calça causada pela posição em que eu estava, teria de ficar em pé na moto e com uma mão só no guidão.  A estrada era bastante sinuosa, uma curva se conectando em outra curva.  Não quis arriscar e segui quilômetros e quilômetros com a perna imóvel até encontrar um recuo com uma porteira que parecia ser a entrada de uma fazenda onde parei e pude então promover o adequado acondicionamento da grana para só então poder relaxar a perna.



Batalha por hotel

Assim que cheguei à cidade de Temuco, pus no GPS o endereço do hotel que havia reservado.  Estava certo de que em breve estaria de banho tomado, roupa trocada e almoçando em algum restaurante.  Mas quando o GPS anunciou a chegada ao Hostel Pewmanruka, percebi que ele levou a uma rua onde não existia esse hotel.  Dei uma segunda volta no quarteirão e nada de achar o hotel.  Eu havia feito a reserva pelo Booking.com, porém infelizmente no endereço indicado naquele site não tinha esse hotel.  Sem muita escolha, iniciei então uma busca por um outro hotel.  Se tem uma coisa que me chateia numa viagem longa como essa (mais de quatro meses na estrada), é esse negócio de ter de achar hotel todo dia.  É muito chato isso.  Para a moto, salta da moto, tira capacete, entra e pergunta preço e se tem vaga, dependendo da resposta, volta, bota capacete, anda mais um pouco, para a moto novamente e começa tudo outra vez até achar um que tenha garagem e com preço aceitável.  É um saco!  Por isso eu costumo usar o Booking.com, fazendo sempre a reserva para o dia seguinte na noite anterior, ainda na cidade onde estiver pernoitando na véspera.  As vezes não se encontra um bom preço, mas na maioria das vezes dá certo.  O único risco é que é preciso dar o número do cartão de crédito como garantia, acho que para evitar trotes.  Se você não aparecer e não avisar, eles cobram uma diária.  No meu caso que só ia passar um dia em Temuco, se não avisasse ao Booking a tempo pagaria por dois hotéis numa mesma noite.  Mas graças a Deus, mais tarde quando já estava acomodado em um outro hotel, na mesma rua, tudo se resolveu com uma ligação (Skype) para o Booking.com.  Depois de relatar o problema eles não me cobraram nada.  Mesmo assim fiquei intrigado, sem entender como o Booking.com pode me mandar para esse tal hotel "desaparecido".  Fiquei pensando: e se eu não tivesse achado vaga em outro hotel, como seria?

Dia seguinte Osorno era meu destino.  Havia a tão esperada troca de pneus que fora agendada há tanto tempo.  Logo depois do café da manhã arrumei as bagagens na moto e segui meu caminho para aquela cidade.  Fazia frio naquela manhã em Temuco e dessa vez já saí preparado, evitando repetir aquela situação na saída de General Acha quando tive de ir me abrigando aos poucos pela estrada.  Certa vez li um texto que anunciava ser um provérbio chinês, que dizia: "Os sábios aprendem com os erros dos outros; os tolos com os seus próprios erros, e os idiotas não aprendem nunca".  Dentro desse contexto eu já havia sido tolo, não queria agora ser um idiota... 
Minha parada em Osorno tinha como único objetivo a troca dos pneus.  Como não havia feito reserva prévia, assim que entrei na cidade iniciei a habitual busca por hotel.  Porém creio que por impaciência fiquei logo no primeiro deles.  Depois de descarregar as bagagens da moto decidi sair logo para fazer o serviço.  Com o GPS novamente em ação, em exatos dez minutos eu estava entrando com minha moto no pátio da MotoAventura.

Depois de pagar pelos pneus, eu aguardava que o funcionário levasse minha moto para a oficina quando vi
 chegar um casal em duas motos iguais, GS Adventure como a minha.  Entraram no salão de vendas onde eu aguardava e começaram a tentar estabelecer uma conversa com a atendente em busca de um hotel para eles.  A conversa não fluía pois ela aparentemente só falava espanhol e eles tentavam no inglês.  Creio que ela compreendeu apenas a palavra universal: "hotel".  Vi que ela então fez uma ligação e em seguida deixou a pessoa do outro lado da linha aguardando enquanto ela tentava passar o valor para o casal, para que eles aceitassem ou não a reserva.  Mas isso ela falando com eles em espanhol e eles respondiam em inglês que não falavam bem o espanhol.  E notei que conversavam entre eles num terceiro idioma, certamente a língua deles, alguma coisa muito parecida com alemão.
A coisa estava realmente empacada.  A atendente estava ali com o telefone na mão numa ligação com o hotel que por sua vez esperava por uma resposta, e o casal relutante em aceitar uma coisa que não estava compreendendo.  Diante daquilo, eu que "quebro o galho" tanto no inglês quanto no espanhol me senti na obrigação de participar daquela "Babel".  O básico até dá para eu entender.  Então eu fui passando em inglês para o casal o valor que a atendente falava em espanhol.  No final aceitaram, agradeceram minha intervenção e iniciamos uma conversa, aí sim digna de Babel.  São Branko e Ingrid Pokorny, holandeses que em Antuérpia botaram as motos em um container e as desembarcaram em Miami.  De lá seguiram para o Alasca, desceram pela América Central e estavam agora indo para Ushuaia.  Depois vão subir em direção ao Brasil e então "descer" para Buenos Aires, seu destino final.
Indicaram-me exatamente o mesmo pneu que eu já estava botando na minha moto, era o que eles também usavam.  Conversamos ainda um pouco e ficamos de nos encontrarmos mais tarde, depois de deixarem as bagagens no hotel.  Mais uma vez deixei passar outra oportunidade de fazer fotos.  A Ingrid ainda chegou a fazer algumas e o Branko me mandou duas por e-mail.

Pneus trocados, balanceados, segui para o hotel e relaxei.  Toda minha apreensão dos últimos dias era exatamente em virtude da possibilidade dessa troca de pneus não dar certo, por qualquer motivo que fosse.  Na situação que eu estava, esses novos pneus eram realmente fundamentais para o bom desenrolar de minha viagem.



estrada de rípio em Moquehue
rocha "se erosionando" e produzindo um rio de pedras





túnel Las Raices
pista sem acostamento
Branko e eu na concessionária BMW de Osorno, Chile


Alimentação difícil

Desde que voltei ao Chile, vindo de Moquehue, comecei a enfrentar dificuldade para me alimentar.  Não encontrava restaurantes, só lanchonetes.  É claro que eles estavam em algum lugar, os restaurantes existem, claro, eu é que não estava achando.  Eu gosto de sair pelas ruas e avistar o restaurante, não gosto de ter de recorrer à internet.  Gosto de ver "a cara" deles, a frequência etc.  Acho que eles devem ser mais escondidos em Temuco e Osorno.

Eu já estava em Osorno, mas quero "retornar no tempo" um pouquinho para fazer um pequeno relato sobre a minha passagem por Temuco.  Como já disse, foi aquela dificuldade para tentar achar o hotel no endereço que não existia então terminei ficando numa hosteria familiar.  Funciona como um hostel normal, mas na verdade é um anexo da casa da proprietária.  São vários quartos numa respeitável edícula no fundo do quintal.  Só que à determinada hora a senhora se fecha na casa e só temos comunicação com ela no dia seguinte quando o café é servido na copa da casa principal.  As chaves dos quartos e do portão da rua são entregues no momento do check in e ficam com os hóspedes todo o tempo.  O curioso é que (como não podia deixar de ser), eu fui parar nessa hosteria por mais um "tropeço do destino", particularidade essa com a qual eu já estava bem acostumado por se repetir em inúmeras circunstâncias da minha vida.  Pois bem, quando vi que não seria mais possível achar o tal hotel onde havia feito a reserva pelo Booking.com, pesquisei no GPS e o botei para me levar para um hostel chamado Pewmanruka, localizado na calle Francia.  Segui pela cidade seguindo as orientações do aparelho e quando ele me indicou a chegada vi que o nome era Hosteria Paris, diferente do que constava no GPS.  Isso já me aconteceu várias vezes e não faz diferença alguma no final.  O importante é ter o lugar para ficar.  Sempre achei que essas alterações no nome de alguns estabelecimentos eram em decorrência de mudança de proprietários ou coisa do gênero.  Os novos donos mantém a atividade mas trocam o nome e a atualização no GPS, Google Maps etc. não é imediata.  Parei a moto no hostel, fiz o meu check in e peguei as chaves do meu quarto e do portão da rua.  Depois do banho fui dar uma volta a pé para tentar comer alguma coisa.


O céu ainda estava claro mas já era tarde, cerca de oito horas da noite.  Tentei chegar a uma rua onde achei que tinha visto vários restaurantes mas não a encontrei.  Pelo caminho via várias placas indicando um tal de Portal Temuco e fui seguindo imaginando ser um centro ou um bairro.  Na verdade era um shopping center desses que têm um supermercado em baixo.  Decidi investir ali mesmo e aplacar a fome que já me consumia.  Afinal a última coisa que eu havia ingerido tinha sido o café da manhã em Moquehue e aquela garrafa de água que eu comprei naquela rápida visita a Villa Pehuenia.

Cheio de fome, eu estava ali parado em frente ao grande prédio do shopping.  Mas não via a porta de entrada.  Havia a inscrição Portal Temuco lá em cima na parede, mas não havia porta aqui em baixo.  Não era como os nossos shoppings que têm portas amplas e às claras.  Por fim, dobrando a esquina, avistei uma modesta porta daquelas com armação metálica preta e um vidro que dava para ver as pessoas lá dentro.  E foi por ali que entrei.  Mesmo assim, apesar de já estar lá dentro não me conformava com aquele projeto arquitetônico estranho.  Essa situação me trouxe à lembrança os gibis dos tempos de criança e fiz uma imediata associação com a "caixa forte" do Tio Patinhas, que era um imenso prédio em forma de cubo com uma única porta.  
Circulei pelo interior do mall em busca de onde comer, e pude então ver que havia uma grande porta de acesso (é claro!), foi quando percebi que eu havia entrado pela porta de serviço, nos fundos.

Não consegui nada de bom e terminei no velho e certo McDonald’s.  Depois de comer, s
aí em busca da entrada para o supermercado que ficava em baixo, e percebi que somente a praça de alimentação ainda funcionava.  Todo o resto do mall já estava fechando, eram nove horas.  Eu queria comprar uma garrafa de água mineral para eventualmente beber naquela noite.  No Chile eles bebem água da torneira numa boa, mas os sites de turismo sempre advertem para que evitemos esse costume pois nunca se sabe como nossos organismos irão reagir por não estarem habituados à essa prática.  Talvez por isso, sempre que estive no Chile jamais bebi a água da torneira. 
Também não achei a entrada do mercado.  Saí então do mall e vi que já estava bem gelado lá fora.  Rodei tudo, dei uma volta no prédio e não vi a entrada.  Só os carros saindo pelas duas pistas que vinham da parte de baixo do prédio.  Ainda cogitei a possibilidade de, mesmo a pé, tentar entrar por ali mas depois pensei que seria mesmo barrado lá na chegada à loja.  Se todos os carros estavam saindo era porque o mercado já estava fechando também.  Então decidi procurar um bar ou alguma mercearia, qualquer lugar onde eu pudesse comprar uma garrafinha de água mineral.  Rodei as ruas próximas e os quarteirões vizinhos ao que eu estava e nada.  Todos os estabelecimentos, mesmo os de outros ramos de comércio já estavam fechados.  Vi acesa ao longe uma dessas geladeiras automáticas com portas de vidro e com latas de refrigerantes no interior.  Me aproximei e vi que estava dentro de um hospital que também me pareceu fechado, não havia movimento nenhum e tinha as portas de grade abaixadas por fora das portas de vidro blindex.  Vencido, voltei à hosteria.  Fiz o caminho de volta ainda com redobrada atenção para não deixar escapar qualquer estabelecimento que pudesse ainda estar aberto.  Quando já estava me aproximando da minha hosteria, vi que o tal hostel Pewmanruka que mais cedo o GPS me indicara estava de fato lá, na verdade duas casas adiante da que eu parei.  Eu havia era errado de estabelecimento e não o nome que foi alterado.  Quando finalmente cheguei em frente da hosteria correta, percebi que exatamente ao lado, no sentido oposto ao que saí, havia um restaurante.  Passei pelo portão e fui me dirigindo à porta do mesmo mas também já estava fechado.  Fiquei intrigado e até mesmo na dúvida se o mundo por acaso não tinha acabado e só tinha sobrado eu,  era muita desolação...
Conformado com minha sorte usei minha chave no portão e entrei na hosteria.

Já dentro do terreno, enquanto caminhava ao lado da casa principal para chegar ao meu quarto vi pela janela da cozinha que duas mulheres conversavam lá dentro.  Lembrei-me da minha garrafinha de água que havia comprado em Villa Pehuenia e que mesmo depois de vazia eu a havia prendido na moto para aguardar um local apropriado para descartá-la.  Era a minha chance!  Acelerei o passo, peguei a garrafa e voltei até a janela onde elas estavam.  Bati e perguntei se poderiam me ceder um pouco de água.  Sorriram enter elas, e educadamente uma delas esticou o braço para fora da janela pegando a garrafa de minha mão.  Destampou, abriu a torneira, encheu, tampou e me devolveu.  Parece piada... E de mau gosto...


Na manhã seguinte lá estava eu de volta à Ruta 5, a Rodovia Panamericana, que me acompanhou desde outubro no norte do Chile ainda lá pela região do Deserto do Atacama.  Agora de volta a ela porém cerca de 2500 km mais ao sul, em direção a Osorno para tentar finalmente trocar os pneus da moto.



Um desvio com pedigree

Um conhecido paraguaio, o internacional Hugo Plotkin, havia me recomendado conhecer Frutillar, uma pequena cidade entre Osorno e Puerto Montt, meu destino naquele momento.  Posso dizer que se algum dia fiz um desvio que valeu a pena ser feito, foi esse para conhecer Frutillar.  Que cidadezinha encantadora!  Na entrada da cidade a coisa é um tanto feiosa, com ares de distrito industrial com galpões etc., mas depois que se chega ao lago o panorama muda completamente, parece uma localidade alpina.  É, ao mesmo tempo, uma mistura de  Lago di Como com Baden-Baden.  Sem dúvida nenhuma teria sido uma pena não ter ido até lá.  A imagem do vulcão Osorno junto com o lago é de jamais se esquecer.  Fiquei algumas horas por lá e foi um tempo muito bem empregado.  Essa parte bonita é uma espécie de bairro às margens do Lago Llanquihue chamada de Bajo Frutillar.  A cidade foi fundada em 23 de novembro de 1856 por colonos alemães.  Apesar da atividade agrícola e da agroindústria local, Frutillar tem tradição musical também.  Nessa parte à beira do lago existem vários adornos, esculturas e vitrines com motivos musicais.  Não sei se a cidade foi maquiada para comemoração de seu 156º aniversário que aconteceu cinco dias antes de minha passada por lá, mas a impressão de esmero na manutenção de tudo foi impressionante.  Conhecendo um pouco da cultura alemã, sinceramente creio que tudo é sempre assim por lá.

Um desvio despretensioso que se revelou imperdível!




Frutillar











Seguindo pela água

A entrada em Puerto Montt foi tranquila.  É uma cidade muito interessante, arrumada, conservada, diria até mesmo bonita.  Afinal é a capital da X região, a Região de Los Lagos.  Teria dois dias para conhecer melhor já que meu embarque só seria no dia 30 e ainda era dia 28 de novembro de 2012.  Dei uma pequena volta pela cidade e fui em busca do hotel onde tinha reserva feita através do Booking.com.  Hotel Seminario na Av. Seminario.  Fácil!  Mas apesar de muito bem ajeitado, com bom preço, boas instalações, boa cama de casal, tv led, excelente calefação, banheiro amplo e tudo limpo ou seja: muito bom apartamento.  Mas apesar disso tudo fica numa ladeira tão acentuada que é quase impossível deixar a moto sozinha, sem ficar em cima dela acionando o freio e dando equilíbrio ao conjunto.  E não tem calçada!  Isso mesmo, não tem calçada do lado do hotel.  Só há uma estreita calçada do outro lado da rua e que mesmo assim não passa de 60 cm de largura.  É uma movimentada via de mão dupla o que dificulta ainda mais para quem vai parar no hotel.  Eu tive de subir e descer duas vezes estudando a situação até decidir como fazer.  Havia uma caminhonete usando o ínfimo recuo em frente ao hotel.  Como esse recuo não era suficiente para abrigar todo o veículo, me possibilitou para atrás dela e ficar “na sombra” em relação ao fluxo da rua.  Parei a moto engrenada e fui pedir para abrirem o portão da garagem.  O negócio é tão íngreme que fiquei com receio de entrar subindo e fui até a curva acima e fiz a volta para acessar a garagem descendo.  Se não fosse por essa condição (e levando em consideração de que estava no Chile que é infinitamente mais caro que a Argentina), eu daria nota dez para o custo benefício do Hotel Seminario de Puerto Montt.  Paguei US$98 por duas diárias (R$210,00, naquela época o Dólar estava R$2,14).

Puerto Montt é uma cidade muito agradável.  A maior parte da cidade tem ruas amplas e bem cuidadas.  Tem uma praça super badalada na beira do mar.  Na verdade a cidade toda está voltada para o mar, o próprio nome já diz ser uma cidade portuária.  Fez sol a maior parte do tempo mas isso não quer dizer que não estivesse frio.  O mais quente que peguei por lá foi uma tarde que fez 13°C.  Na maior parte do tempo fazia algo em torno dos 9ºC durante a tarde.  Depois naturalmente a temperatura ia caindo só voltando a esse ponto na tarde do dia seguinte.  Mas isso não era o mais chato.  O vento é que incomodava.  Ele sim era muito frio.  Eu realmente gostei muito de lá.  Só que nem tudo é perfeito...  Lembro que na segunda tarde estava caminhando e quando estava passando por aquela praça à beira mar, me abrigando do vento gelado,  vi uns estudantes de camisa do colégio tomando sorvete.  Olhei com mais atenção e vi que todos ali estavam vivendo um dia de verão.  Carrocinhas de picolé e outras guloseimas adornavam o ambiente.  As crianças menores brincando com bolas, os um pouco mais velhos correndo e brincando, os adolescentes em pequenos grupos conversando e os idosos tomando sol sentados nos bancos.  Eles viviam ali um dia de pleno e alto verão.  Mas seria mesmo possível, eu não estava sonhando?  Eu ali com um frio do cão e eles tomando sorvete?  Acho que eles devem ter feito transfusão com sangue de pinguim!


No dia seguinte fui caminhando até o escritório da Navimag, empresa de navegação que me levaria de Puerto Montt a Puerto Natales.  O escritório era longe, muito longe.  Mas me senti bem de ter feito aquela caminhada, estava devendo
 ao meu esqueleto essa pequena e breve atividade.  Soube lá o horário ideal para me apresentar no dia seguinte e o portão que deveria entrar com a moto. 

Na sexta-feira lá estava eu entrando no porto em direção ao navio no qual passaria quatro dias navegando sentido sul, cruzando mares internos, uma parte externa no Pacífico, glaciares e estreitos canais de fiordes, para depois então desembarcar em Puerto Natales.


Quando entrei no porto uma fiscal veio puxar conversa sobre esse estilo de vida.  Ela disse que também gostaria de levar a vida assim como eu, essa vida de viajante.  Achei engraçado como o que pode parecer tão normal para uns é visto com tanta admiração por outros.  Eu estava ali esperando o meu momento de ser chamado pela administração portuária para então iniciar o procedimento de embarque.  No decorrer de nossa conversa ela me perguntou se eu já tinha passado pela Romana.  Não compreendi bem e pedi para que ela repetisse a pergunta.  Novamente perguntou se passei pela Romana.  O que seria essa Romana?  Questionei a ela o que é Romana?  Ela dizia que eu antes de embarcar teria de passar pela Romana para obter permissão de embarque.  Ok, eu pensava, mas onde é isso, como chego lá?  Foi difícil entender mas depois de alguns minutos vi que se tratava de uma balança.  Como disse que ainda não tinha feito nada, estava apenas esperando instruções, ela me orientou a ir na Romana 2, que fica no outro lado do quase interminável pátio.  Liguei a moto e fui lentamente andando pelos caminhos internos do porto até que avistei uma placa "Romana 2".  Fui me aproximando e vi enormes caminhões em fila para serem pesados.  Tomei meu lugar naquela fila e em poucos instantes estava como uma formiguinha entre elefantes, com caminhões adiante e atrás de mim.  Algumas dezenas de minutos depois era a minha vez de subir na balança.  Assim que parei a moto o operador me mandou sair de cima da plataforma para pesar apenas a moto, sem a adição do meu próprio peso.  Feito isso ele imprimiu uma ficha de controle para ser entregue na administração.  A moto sem mim deu 340kg.  Não pude deixar de lembrar da minha presunção em pretender levantá-la naquele tombo na areia quando estava chegando em Villa Pehuenia...

O tempo embarcado é quase todo preenchido por emoções provocadas pelas obras de Deus (ou da natureza para os agnósticos ou ateus).  É tudo inimaginável, só estando lá para conferir.  Foi uma etapa da viagem que comparativamente a todo o restante se mostrou cara, mas com toda certeza valeu cada centavo!  Lembro que quando fui comprar minha passagem li em algum lugar que esse cruzeiro era considerado ou eleito por alguma entidade o mais bonito do mundo!  Esse não foi meu primeiro cruzeiro marítimo, mas com certeza foi o primeiro em que a principal e maior atração não estava no próprio navio.  Normalmente os cruzeiros têm como atração o luxo dos ambientes e as atividades oferecidas e proporcionadas a bordo.  É tudo muito grandioso e glamouroso.  Já neste era tudo muito espartano e simples, não havia nenhuma atração majestosa como seria natural num cruzeiro marítimo.  As poucas atividades in door limitaram-se a 
(no refeitório) duas ou três apresentações de filmes alusivos à fauna e natureza local (como um belo documentário sobre pinguins), e uma noite especial em que houve um bingo no cofee bar junto ao deck superior.  Realmente a grande atração desse cruzeiro está na geografia e na natureza que nos acompanhavam pelas águas que cruzávamos.  Impressionante, inesquecível e fantástico: deslumbrante!

Desembarcando em Puerto Natales fui procurar o Hostel Melinda onde havia feito reserva.  A tarefa foi ficando difícil então pedi ajuda num posto de gasolina.  O frentista não conhecia mas um cara da TvRed que estava abastecendo a viatura disse que me levaria até lá.  Merrrmão!!!!!  O que é isso?!?!?!  Uma espelunca!  Fiquei com medo da minha moto enferrujar toda só de estar parada ali em frente.  Saí rapidamente dando uma desculpa esfarrapada com receio de pegar um tétano.  E ainda me seriam cobrados US$ 126 por três diárias!  Resultado: estava literalmente na rua, tinha de achar onde ficar o mais rápido possível.  Passei em frente ao Hotel Martin Gusinde, um bom hotel.  Parei, fiz preço, chorei e fiquei.  Mas também fiquei espalhado num quarto melhor que aquele de Puerto Montt.  A calefação chegava a fazer calor.  Um verdadeiro paraíso naquele universo congelado.


Tomei um gostoso e civilizado banho, bem diferente dos que tomei no navio onde era necessário ficar apertando toda hora com a lateral do joelho o botão para sair água.  E lá no navio a água era muito quente para meu gosto.  Não havia controle de temperatura e apesar de eu ter me tornado um cara um tanto friorento, não gosto de banho muito quente.


Depois do banho fui dar aquela básica volta de reconhecimento.  Procurei pela agência indicada pelo pessoal da Navimag e contratei um Tour Full Day para o dia seguinte.  As sete e trinta estariam me pegando no hotel.



Hotel Seminario (sem calçada no lado do hotel) 






repare no peso da moto: 340k
aguardando no porto para embarcar no navio














apesar do frio um instante de sol.  Repare no canto direito da foto uma figura "quarando" aproveitando o sol




Puerto Natales




Tour Full Day

Alguns meses antes (em final de julho e começo de agosto) estive de moto no deserto do Jalapão.  Até decidir optar por um guia, a cada saída ficava todo sujo, empoeirado, e batendo cabeça sem encontrar os lugares certos das atrações locais.  Para evitar passar pela mesma situação, assim que cheguei em Puerto Natales comprei um tour Full Day para conhecer as maravilhas das redondezas.  A experiência com a senhora Sonia em Moquehue tinha sido boa, objetivando bastante a coisa.  Achei que seria muito mais proveitoso ir numa van com quem já conhece do que ir sozinho de moto.  E realmente foi, a ajuda do guia Huber, Uber, Hueber, sei lá... não consegui guardar (aprender) o nome dele, só o sobrenome que é Da Silva.  Como ele mesmo diz: ele tem de ir conhecer o Brasil porque tem nome de brasileiro.  Pois bem, com a ajuda do Da Silva fui apresentado às fantásticas atrações do sul chileno, mais precisamente da região do Parque Nacional Torres del Paine.  Eu fui o penúltimo a ser "abduzido" pela van.  Ela ia de hotel em hotel pegando cada um dos nove turistas que compuseram o passeio junto com o guia Da Silva e o motorista Marco.

Passamos em vários locais interessantíssimos.  Cova del Milodon, diversos lagos, vimos uma região com muitos Condores, uma outra parte repleta de Guanacos, rios, cachoeiras, montanhas rochosas etc.  Paramos para um café numa interrupção de 15 minutos.  Comprei apenas um café preto.  Dali fomos para o Parque Nacional, onde estão as tão famosas Torres del Paine.  Depois quando tudo já estava mais que visto e fotografado fomos nos encaminhando para um restaurante onde faríamos a parada de almoço.  Mas lá é tudo distante, quilômetros e quilômetros entre uma coisa e outra, levando as vezes trinta minutos ou mais pelas estradas de rípio (todas) para chegar na próxima parada.


Aí aconteceu o que eu nem me lembrei, mas que seria mais do que certo de acontecer... onde eu estava com a cabeça quando comprei esse tour numa van?  Claro!  Eu sou assim há 55 anos (naquela época!): simplesmente enjoei.  Comecei a ficar com aquela já tão conhecida sensação de suor frio e a boca “aguando”.  Vi que um final trágico estava iminente.  Chegamos então no restaurante.  Parada de 45 minutos.  Entrei, peguei o cardápio, li um pouco... mas minha fisionomia não devia estar das mais amistosas e o Da Silva veio falar que poderia pedir a la carte ou o buffet etc.  Foi quando eu disse a ele não se tratava das opções de comida, a verdade é que eu estava muito “mareado” e que eu achava melhor nem botar nada no estômago.  Ele me recomendou ir lá pra fora respirar bastante ar, aquelas coisas que sempre se fala numa situação dessas.  Mas o meu medo, ou melhor, o meu pânico era que eu sabia que ainda estávamos no meio do dia e eu ali a léguas de distância do meu hotel.  O que eu ia fazer da minha vida???  Pensei em pedir carona em alguma outra van que estivesse voltando direto para a cidade, mas mesmo assim eu estava longe e não resistiria por muito mais tempo.  Fui a uma pequena lojinha do lado de fora do restaurante e expliquei ao cara o que estava acontecendo comigo, perguntei se ele teria algo para me ajudar.  Ele recomendou um chiclete pois segundo ele o fato de ser doce ajudaria.  Comprei e cheio de medo comecei a mascar um.  Claro que não fez efeito nenhum.  Procurei os banheiros e vi que ficavam distantes, bem retirados dali o que me dava bastante condição de privacidade.  Fui então para lá na intenção de antecipar o que eu já sabia que seria inevitável ocorrer no decorrer do nosso tour.  Fiz até força para acontecer, mas estava com o estômago vazio e nada além de muita saliva na boca e umas cuspidas no vaso.  Sai do banheiro desolado, o que eu ia fazer agora?  Voltei caminhando para o restaurante.  O Da Silva estava lá fora e me perguntou como estava.  Diante da minha resposta ele decretou que eu iria no lugar dele, no banco da frente.  Isso realmente surte efeito comigo.  Parece coisa de menino mimado, mas desde garoto que se eu ando no banco traseiro eu enjôo.  Até quando pego um taxi tenho de ir no banco da frente.  Só que ali a situação era diferente porque eu já estava enjoado.  Essa manobra normalmente funciona para que eu não fique enjoado porém eu já estava.  E muito!  Porém é claro que aceitei.  Venci meu constrangimento de destronar e afastar o guia de seu lugar, junto ao microfone no posto de comando para tentar evitar constrangimento maior.  Quando entramos ainda brincamos que a partir dali teríamos novo guia etc.  Mas apesar da encenação feita pelo impagável Da Silva, certamente para tentar me fazer pensar em outra coisa, a situação não era nada descontraída para mim.  Mas de fato eu consegui controlar um pouco o negócio.  Não melhorou, mas também não foi naquele crescente habitual que eu já tão bem conheço.  De vez em quando dava aquela "apertada" e eu fechava os olhos, respirava fundo e pedia a Deus que me ajudasse.


E fomos assim, a cada nova atração parávamos, saltávamos, tirávamos fotos, e voltávamos cada um para o seu lugar: o Da Silva no penúltimo banco e eu no da frente.


Até que chegamos na área da visitação ao Lago Grey.  Nessa parada o Da Silva não nos acompanhou.  Nos levou até uma espécie de púlpito com um mapa afixado a ele e explicou todo o nosso trajeto.  Era necessário caminhar por uma hora.  Passaríamos sobre um turbulento rio por meio de uma ponte molenga sustentada por cordas, dessas de filme das selvas, por uma trilha que nos levaria até o início da praia, de onde depois caminharíamos até a sua outra extremidade.  De lá poderíamos ver o famoso glacial Grey.  Além (naturalmente) dos icebergs boiando no Lago Grey.  Na verdade já era possível vê-los desde o início da caminhada na praia.


Logo que cheguei na ponte havia uma placa que alertava para o limite máximo de 6 pessoas sobre ela.  Outros turistas atravessavam a ponte e achei prudente evitar um banho naquela temperatura.  Esperei ela esvaziar e dei início à minha travessia.  A bicha foi balançando muito e no meio deu um ventão que eu pensei que ela não ia resistir. Mas felizmente passei e comecei então a caminhada pela trilha.  O Da Silva tinha dito que teríamos trinta minutos para ir e mais trinta para voltar.  Já não uso relógio há mais de um ano, mas na minha cabeça era só acompanhar o grupo que tudo estaria sob controle.  Porém o negócio é longe, muito longe.  Haviam muitas vans e muitos ônibus no estacionamento, o que indicava que também seriam muitos turistas por lá.  Dito e feito.  Na praia eram vários grupos, uns ainda indo e outros já voltando.  Chegou num ponto em que eu já não sabia mais quem era quem, qual era o meu grupo.  Eu andava e andava e o fim da praia nunca chegava.  Eu levava comigo de um lado a bolsa com a máquina fotográfica e a filmadora.  Do outro uma garrafa de água mineral que eu havia trazido já imaginando sentir sede numa situação dessas.  Parece pouca coisa mas àquela altura tudo isso já pesava uma tonelada.


E o fim da praia não chegava.


Eu enjoado, andando que nem um condenado numa praia fofa feita de pedrinhas, há pelo menos 30 minutos, ventando pra cacete, frio pra cacete, o que mais de ruim poderia acontecer pra piorar?

Conta aí até três.  Isso mesmo conta até três... contou?  Um, dois, três.  Pois é: foi esse o tempo que levou para vir uma nuvem galopando lá dos infernos e começar a chover.  Quando dei por mim eu estava sozinho na praia, todo mundo já tinha voltado e o retardado aqui ainda indo, andando no sentido contrário.  Fiz meia volta e iniciei todo o martírio de andar tudo de novo.  A bolsa e a garrafa de água já pesavam agora duas toneladas cada uma.  Na saída para o início da caminhada o Da Silva alertou para não esquecer de proteger os ouvidos do vento frio mas o capuz do meu casaco não parava no lugar.  Estava tudo uma beleza!!!  Andei, andei e andei.  Só me dei conta que na ida a trilha foi em descida agora na volta quando me deparei com ela em subida.  Enjoado, com frio, no vento, chovendo e subindo carregando 18 toneladas, que ótimo.  Melhor impossível.  Quando finalmente cheguei na ponte vinha um monte de gente vestida com aquelas capas de chuva náuticas amarelas.  Umas quinze ou vinte pessoas.  No barato!  Alegres, dando rizadas e brincando entre eles.  Tudo retardado!  Para estar sorrindo numa situação daquelas só retardado.  Esperei um pouco do meu lado para ver se eles iam se dividir em grupos e me dar a chance de cruzar antes do batalhão acabar a travessia.  Mas como vi que isso não ia acontecer fui caminhando e a ponte balançando ainda mais.  Eles paravam para tirar fotos, fingindo cair da ponte e eu ia ficar ali esperando aquilo acabar?  Aos poucos eles iam se deslocando metro a metro.  Eles vindo e eu indo.  No meio da ponte olhei para frente e vejo o Da Silva lá na margem me olhando com cara de apavorado.  Os olhos pareciam maiores que o próprio rosto dele.  Sabe aquilo que acontece em desenho animado?  Que o olho sai do rosto e fica grandão?  Pois é, foi essa a impressão que eu tive...  Quando passei por ele falei I’m the last one...  Ele respondeu: Don’t worry.  E veio caminhando atrás de mim até a van.  Estava mais do que consolidada a minha condição de ancião prejudicado e ainda sob cuidados...  Entrei na van e nem olhei para todos que naturalmente já estavam acomodados na parte de trás.  Fiquei calado por pelo menos 40 minutos.  Só fui falar quando eles fizeram mais uma parada para fotos.  Ao abrir minha porta a garrafa que estava no meu bolso caiu fazendo um barulhão no estribo do carro.  O Da Silva correu pensando que era eu que estava caindo eu acho.  Olhei para ele ainda sentado no carro e ele disfarçou dizendo que pensou que tinha sido a máquina fotográfica que havia caído.  Ele pensou é que era eu que estava desmontando mesmo...







Da Silva e uma turista do México




Condores

Guanacos
Cascata Del Paine
Torres Del Paine










Lago Grey





Onde o vento não fez a curva

Dia seguinte, ainda em Puerto Natales antes de seguir para Punta Arenas, fui a uma agência dos correios e enviei para o Brasil um pouco do meu excesso de bagagem.  Coisas que já não usaria como roupas para temperaturas mais altas, que tiveram sua importância na travessia do Deserto do Atacama, por exemplo, mas que certamente já não iria mais necessitar naquela viagem.  Se na volta quando estivesse subindo para latitudes menos negativas sentisse falta de alguma dessas tralhas daria um outro jeito e resolveria a situação.  Não dava mais para ficar levando tanta coisa sem necessidade.  Coisas que só faziam a moto ficar mais pesada e instável nos caminhos sem asfalto.

Resolvida a remessa fui para o hotel, paguei e deixei Puerto Natales.

Boa estrada, bom asfalto mas muito vento, muito!  Incrível a força que o vento exerce sobre a moto (e sobre mim!).  Quando é lateral faz com que a moto vá o tempo todo inclinada ao contrário, compensando a pressão dele.  Frontal a coisa é um pouco alternante: ou faz força oposta ao motor, diminuindo a velocidade, ou fica oscilando em 45º de um lado para o outro, mas sempre frontal.  Isso faz com que a cabeça da gente fique igual àquele braço do boneco inflável de posto de gasolina: sem controle balançando de um lado para o outro.  Delicioso...
Há momentos em que você não sente o vento mas isso não significa que ele não esteja lá.  É que está vindo pelas costas.  E isso causa um efeito ainda mais perigoso pois faz com que a moto freie menos e ande mais rápido sem você sentir ou querer.  Houve uma hora em que o vento veio por trás e aconteceu uma coisa impressionante:  eu estava a uns 120 ou 130 km/h e senti a minha cabeça sendo empurrada para frente.  Sabe quando a garupa bate capacete contra capacete e te empurra a cabeça para frente?  Pois é.  A 130 km/h o vento vinha com rajadas que empurravam minha cabeça para frente.  Que velocidade seria essa?  Chega a ser assustador...

Duzentos e cinquenta quilômetros depois, já quase chegando em Punta Arenas fui parado por dois Carabineros que estavam medindo a velocidade dos veículos na rodovia com um radar de mão.  Me mandaram encostar e o que estava com o radar disse logo que eu estava a 113 km/h.  Eu já havia diminuído a minha média em virtude do vento, estava perigoso ir mais rápido.  O segundo policial veio então me pedir os documentos.  O do radar alertou que não deveria ir tão rápido porque o vento poderia me lançar fora da estrada.  Confesso que achei um exagero mas aproveitei para concordar dizendo que ele veio por trás empurrando meu capacete para frente, e inclusive a todo momento eu tinha de reduzir porque ele me fazia ir mais rápido do que eu pretendia.  Claro que isso foi já uma tentativa camuflada de justificar meu excesso de velocidade.  Aquele trecho da rodovia era de 100 km/h e segundo eles eu estava a 113.  Comentei sobre a força do vento que eu jamais havia visto coisa assim, que no Brasil esse vento não existe.  Voltaram a me alertar que ele poderia me derrubar ou me lançar fora da estrada.  Mais uma vez fingi acreditar, mas eu estava mesmo era preocupado em parecer um tanto refém daquele vento e dos efeitos dele para minha condução acima do limite de velocidade.  Depois de um papinho com eles perguntei: o que vocês querem mesmo, meu passaporte?  Me mandaram seguir, escapei dessa...


Entrei em Punta Arenas e como de costume fiz aquele meu pequeno tour de reconhecimento inicial.  Mas o danado do vento não me deixava em paz, estava lá o tempo todo atrapalhando meu equilíbrio.  Resolvi então seguir para o Hostal Patagonia pois tinha reservado duas diárias a US$ 134 as duas.  Parei a moto no canto da rua e botei o hotel no GPS.  Andei cerca de 50 metros e um semáforo vermelho me fez interromper a marcha.  Quando já ia parando veio um vento tão forte que vi uma mulher na esquina, tentando andar para frente, totalmente inclinada, e sendo empurrada para trás.  Impressionado observei isso por poucos segundos pois foi o tempo necessário para esse mesmo vento me derrubar.  Fui ao chão eu e a moto.  Imagina você parando no sinal e duas pessoas te empurram a moto de lado.  Mas não é dar um empurrão tipo empurra e para não!  É empurra, e empurra, e empurra.  Constante, sem interrupção até você cair.  Parecia que tinha uma corda amarrada no guidão da moto e um carro saiu puxando para o lado.  Impressionante.  Caí estatelado.  Dessa vez, ao contrário do tombo na areia chegando em Villa Pehuenia, doeu... Achei que tivesse quebrado a mão direita.  Doía muito.  Atrás de mim vinha um pequeno caminhão com três pessoas que imediatamente saltaram e vieram me acudir.  Deve ter sido bonito de ver de camarote como eles viram.  Eu caí apartado da moto, um metro eu acho.  Fui meio que lançado de cima dela.

Os caras correram para mim e enquanto eu me levantava dizia que nunca vira um vento desses.  Pedi ajuda para erguer a moto, agradeci e saí com extrema cautela e atenção.  Mas ainda com a certeza de que alguma coisa de ruim tinha acontecido com a articulação da base do meu polegar direito.  Doía muito, e a unha do mesmo dedo também doía.  Virei a esquina e lá estava meu hotel.  Parei no cantinho da rua, junto ao meio fio e fiquei um tempo ali, “curtindo” a dor e esperando melhorar um pouco antes de entrar.  Naquele momento tive plena convicção de que minha viagem estava acabando ali.  Bom e contumaz conhecedor da dor de uma fratura, intimamente imaginei que estava ali mais uma vez aumentando minhas próprias estatísticas.  Lembrei do meu amigo Gilson Miranda que também interrompeu uma viagem à Ushuaia por uma situação de queda.  Foi aí que me veio à mente o alerta que os Carabineros me fizeram lá na estrada a respeito da força dos ventos, que eu poderia ser lançado fora da estrada.  Nunca se deve desprezar a experiência alheia...

Depois de assumir meu quarto no hotel, saí para dar uma volta a pé, precisava cortar meu cabelo pois já estava há meses fora de casa.  O vento realmente faz parte do cotidiano daquela cidade, mas aquele dia era um dia especial.  Comprovei isso no dia seguinte pelos diários (jornais) que traziam a notícia de rajadas de até 140 km/h.  Eu mesmo passei, a pé, pela mesma situação daquela mulher que me tirou a atenção na esquina em que caí.  Mais de uma vez fui empurrado para trás e as vezes com a nítida sensação de que mesmo estando a pé seria derrubado.  Essa é mais uma situação que não dá para descrever, só mesmo ao vivo.


Antes de descer do hotel para dar essa caminhada passei um Gelol na articulação da mão que estava doendo bastante.  Cheguei realmente a me conformar achando que minha viagem estava acabando ali.  Estava impossível movimentar meu polegar direito.  Mas, contrariando todos os meus prognósticos, depois de mais ou menos uma hora a dor foi amenizando até que passou a só incomodar se eu tocasse na articulação atingida.  Por mais de uma semana ainda doía quando encostava no local, mas felizmente e graças a Deus não atrapalhou em nada na condução da moto.


No dia seguinte peguei um “colectivo” e fui conhecer a Zona Franca de Punta Arenas.  Para quem está habituado a visitar  Ciudad Del Este no Paraguai, essa zona franca não tem vantagem nenhuma.  Mas valeu como curiosidade e conhecimento.  Na saída peguei um taxi para voltar ao hotel e pedi ao motorista que antes me levasse até a estação do buque que vai para Porvenir.  No dia seguinte teria de estar lá, e para evitar possíveis imprevistos já queria entender e conhecer o local.  Ao contrário da travessia pelo norte da Terra do Fogo que é ininterrupta, aquela de Punta Arenas só ocorre uma vez por dia.  O motorista ainda me orientou a estar 45 minutos antes da hora da saída da balsa para comprar o bilhete.  Foi bom esse alerta, porque no dia seguinte quando cheguei havia uma longa fila na bilheteria.  Essa antecipação foi providencial porque foi exatamente o tempo que levei para comprar o bilhete e embarcar com a moto.


Esse tal de “colectivo” que mencionei acima, nada mais é do que um taxi que vai fazendo uma linha fixa, mantendo o itinerário, e lotando de passageiros que entram e saem como num ônibus.  Funciona como um ônibus, tem o numero afixado na capota com o itinerário e vai parando, pegando e deixando passageiros.

No hotel pedi ao recepcionista que ligasse para o Hotel España em Porvenir e fizesse minha reserva.  Resolvido isso, no dia seguinte lá estava eu embarcando no barco com destino àquela cidade na Terra do Fogo.



O tempo e o vento

Érico Veríssimo que me desculpe por usar o mesmo título.

Porvenir é uma cidade gelada, mas graças a Deus o hotel era muito bem aquecido.  Quando cheguei não sabia bem se ficaria um ou dois dias por lá.  Ainda estava adiantado para minha próxima data fixa que era a segunda-feira 10 de dezembro, dia em que deveria estar chegando em Ushuaia pois naquela cidade já tinha reserva feita e paga antecipadamenate.  Cheguei em Porvenir ainda na sexta-feira e poderia ficar por lá ainda mais um dia se quisesse.  Nos meus cálculos teria de pernoitar em Rio Grande no domingo para então na segunda-feira seguir para Ushuaia.

Fui dormir depois de um bom jantar, sem sequer ter saído do hotel.  No dia seguinte escrevi o texto abaixo:



"Hoje resolvi permanecer mais um dia aqui em Porvenir.  Não pelas atrações da cidade, até porque ainda nem saí do hotel desde que cheguei ontem, ainda não conheci nada.  É que está chovendo com aquele tempinho fechado, e eu imagino a temperatura lá na rua...  Ontem no final da tarde fui até lá fora pegar uma garrafa de água que tinha deixado dentro da mala que viaja sobre o banco traseiro da moto e pude sentir literalmente na pele a vida real lá de fora.


Na internet a previsão do tempo para amanhã é de tempo encoberto porém firme.  Como estou adiantado em relação à minha reserva em Ushuaia (tenho um dia de folga) vou usá-lo agora.  A chuva em si não me incomoda em nada.  O problema é enfrentar 180 km de rípio a cerca de 6°c ou menos, num vento doido e ainda com chuva.  É muito.  Se posso evitar um dos incômodos vou evitar pelo menos a chuva.  Amanhã eu sigo para Rio Grande, voltando ao território argentino.


Como de costume a todo instante estou alterando meus roteiros.  Creio que pela enésima vez alterei meu trajeto da volta.  Já havia decidido intimamente que não iria mais passar por Montevidéu, Punta del Este etc., tampouco Buenos Aires.  Só não sei ainda ao certo por onde vou, se volto ao Chile e subo a Carretera Austral, se vou a Neuquén visitar os amigos Flor e Facu Cis que fiz em Moquehue, se vou a Osorno comprar mais um par de pneus... sei lá, ainda está tão distante para decidir agora... vou 'deixando a vida me levar' ”.




atravessando o Estreito de Magalhães de Punta Arenas para Porvenir



onze e meia da noite em Porvenir
onze e meia da manhã em Porvenir - a bandeirinha sempre esticada pelo vento



Reta final

Tentei sair antes das nove mas não deu.  Muitos afazeres: arrumação da bagagem, café da manhã, abastecimento, calibragem ideal dos pneus para o rípio etc.  Mas não muito após as nove eu estava entrando na Y-79, a estrada chilena da Tierra del Fuego que me levaria de Porvenir ao Paso San Sebastián, fronteira do Chile com a Argentina.  No início a estrada tem um rípio mais consolidado e apresenta um trajeto um tanto sinuoso que vai margeando a Bahía Inútil, no Estreito de Magalhães.  Essa baía recebeu essa denominação do almirante Phillip Parker King, numa exploração pela Patagônia em 1827, por não ter se prestado para nada.  Segundo ele "ela não deu nem ancoragem, nem abrigo, nem qualquer outra vantagem para o navegador".
Depois que abandonou a costa, a estrada Y-79 começou a perder as características sinuosas de seu início e tendeu mais para trechos em retas médias e curvas suaves.  O rípio se manteve bom por quase toda sua extensão.  Poucos foram os trechos em que ficou mais solto.  Até havia, mas não chegaram a dez por cento do todo.  No total foram 170 km de rípio.  Até a aduana chilena foram 155 km.  E depois mais 15 km até a aduana argentina.  O asfalto só iniciou após os trâmites de entrada na Argentina.

Eu tinha conhecimento da existência de um posto YPF na aduana argentina de San Sebastián, mas também vinha com a informação de que ele estava desativado.  Feliz surpresa quando vi que estava funcionando normalmente.  Eu havia enchido o galão de gasolina em Porvenir como precaução porque a Flor (amiga que fiz lá em Moquehue) havia me informado por e-mail que sua mãe havia lhe dito que estava complicado o abastecimento em Rio Grande, sua cidade natal.  Diante desse cenário, na minha cabeça talvez fosse necessário ter combustível suficiente para ir de Porvenir até Tolhuin, cidade posterior e distante cerca de 100 km de Rio Grande.  Mas agora, com aquele posto funcionando e meus tanques cheios, havia até certa folga para chegar a Tolhuin.  O próprio frentista do posto dali de San Sebastián me disse para não enfrentar fila em Rio Grande, deixar para abastecer em Tolhuin.


Pode parecer que é exagero ter preocupação de abastecimento numa moto como a minha que tem um tanque de 33 litros e autonomia de sobra para ir de Porvenir até Ushuaia sem precisar abastecer nem uma vez sequer.  Mas isso em condições normais.  E nem estou me referindo ao consumo excessivo causado pelo enorme sobrepeso de bagagem.  É o vento que não nos deixa ter certeza de nada, é daí que vem a constante preocupação.  O consumo fica imprevisível nessas condições.  A moto é um veículo muito suscetível a qualquer movimento do ar.  E é claro que isso interfere no desempenho e por consequência interfere também no consumo.  Nos ventos laterais daquela região ela anda tão inclinada e por tanto tempo que chega a gastar o pneu mais de um lado do que do outro.  No contravento então nem se fala.  As motos menos potentes (de menor “cilindrada”) em muitos casos mesmo indo a pleno motor não conseguem ultrapassar os 60 km/h nessas condições.  Certa vez, em 2010, estava na região do Atacama descendo em direção à Santiago pela Ruta Panamericana.  Dessa vez eu estava com outra moto, uma Harley-Davidson de 1600 cilindradas.  Me acompanhando estava um amigo com uma Honda Shadow 750cc.  Em determinado ponto, quando paramos para algumas fotos ele me pediu para eu ir mais devagar.  Argumentei que estava mantendo 100km/h, que não estava indo tão rápido assim.  Foi quando ele disse que não estava conseguindo atingir essa velocidade pelo vento contrário.  E isso foi na região do Atacama, onde até venta bastante, mas nem se compara com os ventos Patagônicos.  E era uma moto de 750cc.  Imagine o que sofrem as motos menores naqueles ventos massacrantes do sul do continente.  As com motores mais robustos que têm reserva de potência conseguem se manter nas velocidades desejadas, mas para compensar a influência do vento são graves os reflexos no consumo.  Como exemplo dessa condição, menciono o vento que peguei de frente entre Santa Rosa e General Acha.  Naquela ocasião para me manter a 120 km/h tive um consumo de 12 km/l contra os habituais 19 km/l.  Mas isso foi lá para os lados de La Pampa, agora eu estava na Terra do Fogo.  A conversa em matéria de vento é outra...


Após o abastecimento quis retornar à calibragem ideal dos pneus.  Agora não haveria mais rípio até Ushuaia, então deveria voltar para a pressão indicada para asfalto.  Por recomendação do Branko para esses fantásticos pneus, eu usei 20 PSI para circular no rípio mas deveria usar 33 PSI para asfalto.  Entretanto no posto havia gasolina, isso não era problema, mas não tinha ar.  Não dispunha desse serviço, não tinha o habitual manômetro e compressor.  Incrível mas é verdade.  E é um posto YPF do ACA, Automóvel Clube da Argentina.  O frentista me indicou um borracheiro que segundo ele ficava logo na primeira curva.  Saí do posto e fui procurando o tal “taller” indicado pelo funcionário mas tinha a impressão de que ainda iria rodar muitos quilômetros com os pneus com pouca pressão.  De relance vi uma placa de madeira rústica pintada a palavra “gomeria”.  Lá estava meu borracheiro.  O “estabelecimento” ficava em plano bastante inferior ao da estrada, sendo preciso fazer uma curva e descer uma rampa para alcançar sua entrada (tudo em rípio).  Entrei na propriedade com a moto e um pastor alemão preso a uma corrente anunciou minha presença.  Em poucos minutos surgiu uma figura com uma fisionomia bastante interrogativa.  Ele caminhava na minha direção e vinha olhando fixamente para os pneus da moto.  Esclareci que só queria “aire”, para encher um pouco “los neumaticos”.  O semblante do cara mudou na hora, era só isso que eu queria: “aire”?  Acho que ele estava pensando que teria de operar um milagre para saber e conseguir desmontar a roda da moto.  Mas era só “aire”, sorrisos e cara de alívio...


O cara ficou tão relaxado por não ter de "trabalhar" nos pneus da moto que acabou me levando para dentro da casa dele para me mostrar a obra que estava fazendo.  Estava terminando de transformar uma grande sala numa espécie de bar, buscando ter uma outra atividade além da gomeria.  Fez ainda questão de "sacar" algumas fotos comigo.  Gente boa a figura!

Deixei a gomeria e iniciei meu percurso argentino na Terra do Fogo.  Destino Rio Grande, a meio caminho de Ushuaia.


O tempo se mantinha encoberto mas não chovia.  Eu via ao longe muitas nuvens de chuva.  No lado esquerdo, sobre o mar, haviam vários e visíveis pontos de intensa chuva.  Todavia no meu caminho eu tinha apenas um cinzento céu pesado.

Cheguei na entrada de Rio Grande mas já trazia comigo há alguns quilômetros a intenção de sequer entrar na cidade.  O programado seria pernoitar ali e no dia seguinte seguir para Ushuaia.  Estava no domingo dia 9 de dezembro e minha reserva em Ushuaia iniciava no dia dez.  Mas ainda estava cedo para parar.  Fiz meus cálculos meteorológicos e eles me retornaram chuva iminente.  Novamente, como ocorreu na chegada a General Acha, vi que ao longe havia uma espécie de janela naquele tempo pesado.  Era tudo o que eu queria, um motivo para não parar em Rio Grande, era o momento de eu aproveitar e seguir adiante mudando meus planos mais uma vez.  Eu tinha porém o receio de chegar adiantado no meu hotel em Ushuaia e não haver vaga para mim.  Me imaginava ao relento na capital mais austral do planeta, a "um passo" do polo sul, e não gostava nada dessa ideia.  Mas decidi que valia o risco, na pior das hipóteses eu tentaria repassar o problema para o cara do hotel.  Ele não iria se limitar a dizer que não havia vaga, eu apostei na ideia de que ele iria tentar uma solução provavelmente ligando para outros hotéis.
Fui seguindo até que surgiu Tolhuin, a cidade que o frentista de San Sebastián me recomendou abastecer.  Logo avistei o letreiro da YPF.  Entrei no posto mas ninguém veio me atender.  Fiquei ali parado até que surgiu um funcionário balançando o dedo negativamente.  Não havia gasolina...

Sem opções voltei à pista e segui meu caminho para Ushuaia, a cidade que seria ao mesmo tempo meu ponto final do trajeto de ida e meu ponto inicial do caminho de volta.  Dali eu não poderia seguir adiante.  Não há adiante.  Não há alternativas em Ushuaia, é voltar ou voltar.


O planeta acaba ali...




rípio

"Gomeria"
sala onde vai ser o bar




Fin del Mundo

Depois de assimilar que o combustível que eu tinha comigo na moto seria toda a minha oferta até Ushuaia, continuei então meu caminho.  Na verdade eu sabia que o que tinha seria suficiente, e ainda havia a reserva de dez litros no galão da COPEC que eu levava comigo desde a região do Atacama.  Fui tranquilo apreciando a paisagem e naturalmente sofrendo os efeitos do vento.  O caminho é inicialmente monótono, entretanto a cada minuto a situação vai se alterando.  O ambiente vai gradualmente se transformando, assumindo ares característicos de montanha.  Subidas de serra, curvas estreitas na beira de precipícios etc.  O frio também aumenta bastante, mas em contrapartida o vento vai diminuindo.  Após o Paso Garibaldi ocorre uma mudança radical na paisagem.  A partir dali não dá para ter dúvidas de que se está na periferia da Antártida.  Nuvens baixas sobre as muitas montanhas com os cumes sempre nevados, e o frio extremamente mais intenso.  O visual é lindo, com a estrada serpenteando e acompanhando o relevo como se fosse um acabamento, uma “bainha” daquelas encostas sinuosas.  Muitas vezes segue cortando e dividindo a natureza, como que demarcando limites com as montanhas de um lado e do outro lagos incrivelmente belos, só antes vistos por mim no cinema.  Após algumas dezenas de quilômetros pude ver em nível bem inferior ao da estrada, incrustado numa profunda depressão no lado oeste, um pequeno e fascinante lago.  Quem passa um pouco desatento certamente perde de ver essa incrível obra da natureza.  Esse lago tem um nome bem apropriado: chama-se Lago Escondido, que nos dá a impressão de existir apenas porque suas águas ficam ali aprisionadas naquele vale entre montanhas rochosas, verdadeiros gigantes de pedra.


Quando finalmente passei pelo portal de entrada em Ushuaia já chuviscava um pouco.  Desci a via de acesso até o centro e avistei um posto YPF.  Conhecendo a instabilidade política da Argentina quis logo garantir o abastecimento de combustível para o meu retorno, nunca se sabe quando vai faltar “nafta” naquele país.  Depois de encher o tanque da moto procurei pelo ponto de “aire” pois aquela providencial intervenção na "gomeria" em San Sebastián não foi muito apurada e de acordo com a indicação no painel da moto ainda faltavam pelo menos quatro pontos PSI em cada um dos pneus.  Mas esse posto também não dispunha de manômetro, então me conformei com o tanto de ar que tinha no interior dos pneus da moto e segui para o hotel.

Porém nessa parada na estacion de servicio YPF percebi que algo muito estranho (ou grave) havia acontecido na minha coluna.  Eu estava completamente “travado”.  Para sair da moto e liberá-la para o abastecimento foi quase impossível, foi um verdadeiro sacrifício.  Somente após abastecer foi que tive real consciência da dimensão da coisa.  Era preciso subir de volta na moto mas eu não conseguia tirar meu pé do chão para erguer a perna direita.  Só na tentativa, na contração do músculo para dar início ao movimento já era extremamente intensa a dor que sentia na região lombar esquerda.  Era tão forte que sequer conseguia levantar o pé do chão.  Tive de erguer a perna com as mãos e passá-la por cima do banco da moto.  A mesma coisa tive de fazer para tirar o pé esquerdo do chão e o apoiar na pedaleira da moto.  Não entendia o motivo dessa mais que desagradável surpresa.  Não foi um trecho tão grande naquele dia, durante a minha "vida" motociclística já fiz percursos infinitamente superiores, de deixar a prova de "Iron Butt" acanhada.  Nesta viagem mesmo já havia percorrido trechos muito superiores a esse.  O único diferencial foi a parte de 170 km de rípio no início daquele dia, o constante vento lateral e o frio de Ushuaia.  No rípio é preciso guiar a moto quase todo o tempo de pé.  O controle fica muito mais fácil e seguro.  Se você vai sentado praticamente perde a condição de piloto e se transforma num “passageiro” da moto.  Se ela escorrega para um lado ou outro você vai junto, se estiver de pé você tem meios de “trabalhar” as pernas e restabelecer mais facilmente o domínio.  Imagine como seriam difíceis as evoluções de um skatista ou um surfista se eles fossem sentados nos seus equipamentos.  O jogo de pernas é que possibilita que o piloto vá fixo e firme na condução enquanto a moto oscila junto com o terreno como uma prancha no mar.  Isso sem falar no alívio para a coluna.  Pode parecer que pilotar de pé é pior, o leigo tem sempre a impressão de que é mais difícil.  Mas não, normalmente só se pilota de pé no “fora de estrada” quando o terreno é irregular.  É uma condição quase fundamental.  O fato de não estarmos sentados, diretamente apoiados sobre o banco da moto, impede que os trancos e vibrações advindos dos buracos, pedras etc. sejam repassados para nós.  As pernas vão semi flexionadas e amortecem essa movimentação constante da moto.  Nessas condições de terreno, pilotar de pé só favorece:  temos uma visão em nível superior e por isso mais ampla do terreno que vem à frente; não somos “passageiros” da moto nas escorregadas naturais em virtude do piso; e amortecemos a movimentação e os impactos do piso irregular porque nessas horas dobramos ou esticamos um pouco os joelhos.
É verdade que eu havia feito de pé os 170 km de rípio o que levou mais de três horas.  Mas quando voltei ao asfalto sentia-me bem, não percebi efeito nocivo nenhum em decorrência desse trecho em que não estava confortavelmente sentado.  Passei ainda por dois controles fronteiriços, a saída do Chile e a entrada na Argentina.  E depois também teve o abastecimento e ainda o procedimento de calibragem dos pneus, a visita para conhecer o interior da casa do borracheiro onde ele estava concluindo sua obra prima e queria apresentá-la.  Tudo isso após o rípio.  Em todas essas situações saltei da moto e caminhei normalmente.  Estava bem fisicamente, não sentia nada de mal.  A coisa só surgiu em Ushuaia.

Só mesmo quando finalmente cheguei no hotel é que vi o quanto eu estava mal.  Meu estado era realmente crítico.  Fui saltar da moto e não consegui, estava literalmente travado.  Foi verdadeiramente um sacrifício descer da moto.  Todos os movimentos que iniciava para tentar sair de cima da moto me causavam dor intensa.  Quem me conhece sabe que não sou uma pessoa "fraca" para dores.  Talvez pelo meu histórico de colecionador de fraturas pelo corpo desde minha adolescência, quem sabe?  Não sei dizer o motivo mas sei que suporto bem a dor.  Nos meus vários atendimentos ouvi incontáveis vezes os médicos questionando a minha "calma", dizendo que qualquer outra pessoa estaria aos berros numa situação semelhante à minha.  Não sei porque sou assim, apenas sei que sou.  E, talvez por essa minha condição, mesmo o meu corpo "gritando" para que eu parasse com aquilo, consegui "atropelar" as dores e fazer os movimentos necessários para sair de cima da moto.  Foi grande e inesquecível o sofrimento mas a tarefa foi executada e fui falar com o recepcionista sobre minha reserva.  Eu estava chegando um dia antes do que havia planejado e reservado.  Diante do estado em que me encontrava, eu não teria forças para uma eventual possibilidade de ainda ter de peregrinar pela cidade atrás de hotel.  Então cheguei me fazendo de desentendido e anunciei que tinha uma reserva.  Ele olhou no computador e disse: “É verdade senhor, o senhor tem reserva mas não para hoje, é a partir de amanhã”.  Não colou, tentei de novo me fazendo de atrapalhado com as datas, mas ele foi insensível.  Tentei remanejar todos os três dias da reserva para iniciar um dia antes mas não teve conversa, a única coisa de positivo que ouvi foi que meu quarto estava vazio e se eu quisesse pagar um dia a mais poderia entrar a partir daquele momento.  Na verdade eu intimamente já vinha cogitando essa possibilidade.  Pelo meu programa original eu iria de qualquer forma ficar em algum hotel em lá em Rio Grande.  Mas com essa minha mania de ir mudando as coisas de acordo com a vontade do momento ou de outras condições externas, antecipei minha chegada em Ushuaia em um dia.  Simplesmente aceitei a oferta e assumi meu quarto no Hotel Costa Ushuaia, um bom e confortável hotel às margens do Canal de Beagle.  Paguei antecipadamente no Brasil R$ 583,00 pelas três diárias.  Lá no local paguei pelo dia de acréscimo.


Depois do martírio de levar toda a bagagem para o quarto, voltei à recepção para tentar arranjar um transporte para o retorno da moto até Cerro Sombrero, o porto norte da ilha da Terra do Fogo.  Na minha cabeça, mesmo sendo quatro dias depois, eu não iria ter condições de suportar mais duzentos quilômetros de rípio com aquela dor nas costas.  Não era a primeira vez que sentia essa dor na lombar.  Tenho esse problema e convivo com ele recorrentemente.  Mas sempre que surge é em virtude de algum esforço ou atividade, como por exemplo aquela tentativa de levantar a moto no tombo que levei na areia na entrada de Villa Pehuenia.  Eu me conheço há algumas décadas e sei quando ela vem para ficar dois dias, e quando vem para demorar mais tempo.  Eu já tinha percebido que dessa vez seria mais demorado pois nunca havia chegado àquele ponto de literalmente me paralisar as pernas.  Estava bastante intensa a dor e consequentemente era muito grande a limitação dos movimentos.  Eu sou extremamente crítico comigo mesmo, vivo repassando as coisas na cabeça para entender como e porque elas aconteceram.  E como não poderia ser diferente, me questionava como fui ficar naquele estado.  Só podia atribuir aos cerca de 170 km de rípio feitos de pé entre Porvenir e San Sebastián.  Uma parte dos quase 500 km rodados naquele dia.  O fato é que, naquele momento eu tinha absoluta certeza de que seria impossível suportar o trajeto de volta.  Meu caminho de retorno não voltaria a passar por Porvenir, agora na volta eu subiria para Cerro Sombrero onde a parte de rípio é ainda maior.  Mas o rípio em si não era o problema, a moto estava se comportando muito bem com menos peso e com pneus apropriados.  O problema é que seria um longo percurso que eu precisaria fazê-lo de pé.  E no estado em que eu me encontrava até para caminhar estava bastante complicado, imagina contar com o fundamental "jogo" de pernas para a pilotagem "off road".


O recepcionista ficou de ver para mim algum tipo de solução.  Eu lhe pedi uma caminhonete ou um carro com uma carreta de transporte de moto.  Mas teria de ser um veículo que pudesse passar pelas aduanas argentina e chilena.  É em território chileno que fica a estrada de rípio.  Ainda ponderei que a princípio seria só uma tomada de preço pois quem sabe se até o dia da minha partida de Ushuaia eu já não poderia estar bem?  Estávamos no dia nove e eu só deixaria a cidade no dia treze.  Todavia internamente eu tinha plena convicção de que teria de usar esse serviço.  A parte de asfalto até o retorno ao Brasil eu encararia numa boa, iria sentado na moto.  O que eu imaginava ser impossível era ficar de pé por quase 200 km.  Um percurso desse tamanho numa estrada de rípio, não se sabe nunca quantas horas vai levar.  O rípio não é como o asfalto, ali estático.  O rípio parece um organismo vivo que se altera a cada dia...


Subi para o quarto só pensando num relaxante banho morno.  Quando abri a porta do banheiro vi que me olhava de volta uma banheira de hidromassagem.  Ali, parada me olhando, no meu banheiro.  Não pensei duas vezes...


Dia seguinte, segunda-feira, ainda estava mal porém um pouco melhor que a véspera.  Não tinha certeza se era início de melhora ou apenas o fato de ter descansado.  Tentar levantar a perna esquerda ainda era para mim tarefa impossível de ser executada.  Chamei um taxi e saí para dar uma volta na cidade, mas não aguentei muito tempo e voltei ao hotel.  Estava triste, mais uma vez achava que meu projeto de viagem tinha sido abalado.  Primeiro foi o tombo no semáforo em Punta Arenas que me atingiu a articulação do dedo polegar da mão direita.  Agora minha coluna estava afetada.  E em matéria de “sul” não poderíamos estar, eu e minha moto, em local mais distante.


Na terça-feira arrisquei uma proeza: peguei a moto e fui ao Parque Nacional Tierra del Fuego.  Fui ver, fotografar e estar no verdadeiro final do mundo.  A extremidade sul da Ruta 3, na Bahía de Lapataia.  Tirei de letra, mesmo com os vinte quilômetros de terra e rípio.  É verdade que fiz devagarzinho e o tempo todo sentado.  Mas voltei ao hotel mais confiante com sentimento de vitória.  É verdade que voltei um pouco mais doído do que quando saí, mas consegui guiar a moto.  Os dois dias que me restavam seriam fundamentais para minha recuperação.




Ushuaia












Retorno em suspenso

Eu saí de casa em final de agosto.  Até aquele ponto já havia rodado mais de 30000 km além dos 2000 km de navio pelo oceano Pacífico e pelos canais e fiordes chilenos.  Eu não concebia a ideia de depois de meses na estrada, chegar em Ushuaia e ficar no hotel curtindo uma dor nas costas.  Isso não estava previsto e definitivamente não era dos melhores programas.  Eu pensava em tudo que já tinha feito e por onde já tinha passado para estar ali.  Foram tantos lugares, tantas pessoas com quem falei e interagi, tantas situações que enfrentei.  Foi uma longa jornada, repleta de emoções, tombos e muitas dificuldades para me conformar em ficar de molho no hotel esperando a saúde melhorar.  Eu estava no sul do sul, no fim do mundo, na pontinha, na extremidade mais austral da última estrada do planeta Terra.  Não fui até lá para ficar preso no hotel.  Eu rodei muito para estar lá.

Mas por outro lado eu pensava que tudo isso até agora representava só a parte da ida, ainda tinha toda a volta!  Tinha de estar pronto e em condições para ela.  Tinha de dar tempo para minha recuperação, mas como conseguir ficar parado?  Tenho uma amiga que certa vez me disse: - Bruno, você se transforma quando sobe numa moto...


Pois é,  não dava para ficar parado esperando a saúde melhorar.

Quando voltei da visita de moto ao Parque Nacional Tierra del Fuego estava fisicamente pior mas intimamente melhor.  Pior em virtude do esforço de subir e descer da moto, de pilotá-la até lá (são 40 km do hotel até o parque) e de ter rodado pelos 20 km de estradas de terra e rípio do interior do parque.  Tudo isso vezes dois se considerarmos que teve a volta do parque para o hotel.  O tempo em Ushuaia estava chuvoso e a parte de terra estava muito escorregadia, com aquele caldo marrom, aquela espécie de nata de lama sobre a pista.  Mas fui e voltei com maestria o que me proporcionou essa condição de me sentir psicologicamente melhor.  Foi uma conquista interior, uma vitória para mim que já me imaginava impossibilitado de dar continuidade à viagem da forma como tanto planejara.  Comecei a alimentar reais esperanças de não mais precisar de transporte para fora da Terra do Fogo como dias antes imaginei que seria imperioso.


Cheguei no hotel tomei um banho e deitei na enorme e confortável cama do apartamento.  Decidi que iria passar o resto do dia ali, descansando e me recuperando ainda um pouco mais.  Queria garantir um pleno restabelecimento.  Isso era necessário, impreterível, fundamentalmente e racionalmente necessário.  Mas parece que alguma coisa fica atentando dentro da cabeça da gente...  Ainda não tinha passado duas horas que havia chegado do parque, eu já estava dentro de um taxi a caminho do centro de Ushuaia.


Caminhei bastante pelas ruas da cidade, fui ao porto, à igreja, almocei, fiz compras, mas quando percebi que estava mancando cada vez mais intensamente vi que era a hora de voltar ao hotel.  Como já disse antes, até pode parecer esquisito mas sou uma pessoa que lida muito bem com a dor.  Não sou de me abalar ou me abater quando tenho algum foco de dor.  Não sei dizer como ou porque mas consigo me abstrair e seguir minha vida independentemente daquele desconforto.  Provavelmente por esse meu histórico de ter colecionado e convivido com tantas "avarias" ao meu corpo.  Acho que deve ser por isso, não sei bem.  Mas a realidade é que para uma dor ser capaz de me abater ou me impedir de levar a vida "normalmente", tem de ser realmente muito forte ou muito grave.  A primeira impressão que isso causa é de uma condição positiva, que me ajuda a levar a vida com mais conforto.  Mas, se paramos para analisar, o que é a dor senão um alerta do nosso corpo pedindo atenção para um ponto ou mesmo a interrupção de uma atividade?  No meu caso tenho de ter muito cuidado porque em virtude dessa "resistência", habitualmente desconsidero esse alerta e dou seguimento ao que estou fazendo ignorando o apelo do organismo.  Objetivamente neste caso quando me dei conta que estava mancando cada vez mais, fiquei muito preocupado de ter abusado no meu passeio e ter agravado meu problema, por isso tratei de voltar logo para o hotel.  Na hora de entrar no táxi as dores já eram tão fortes que foi novamente preciso puxar a perna com a mão para embarcar no automóvel.


O tempo que passei no taxi no trajeto do centro até o hotel não foi suficiente para me fazer assimilar o esforço da minha recente andança pela cidade e assim que cheguei na recepção perguntei ao Germano (aquele funcionário a quem pedi o transporte para a moto) se havia algum passeio que eu deveria fazer.  Ele mencionou a navegação no Canal de Beagle e o Trem do Fim do Mundo.  Pedi que fizesse reserva para o dia seguinte.  Subi e só desci para jantar às nove horas da noite.  Estava comportadamente tentando fazer um misto de turismo e tratamento de recuperação.  Acho que deu certo.


No dia seguinte fui ao porto para fazer essa navegação no Canal de Beagle.  O negócio é dez!  Muito bom mesmo.  O dia estava até ensolarado.  Bastante frio mas com sol.  O barco tem uma área superior aberta, uma espécie de grande varanda para que se possa avistar e fotografar 
melhor as atrações.  Apesar de ser verão estava fazendo aquele habitual clima gelado não sendo muito confortável ficar muito tempo por lá mesmo usando casaco.  Apesar do frio o dia estava bonito e com sol brilhante, o que é melhor que frio sem sol ou frio com chuva.
Vimos os animais da região tomando sol nas ilhas do canal, as árvores que têm as copas deformadas e projetadas para o leste pelo vento constante, ouvimos as histórias das navegações, foi muito bom mesmo.  Na parte da tarde eu iria fazer o passeio do trem mas como me senti mais doído, preferi ficar no hotel descansando a coluna.  Já era dia 12 de dezembro e eu deixaria Ushuaia no dia seguinte, dia 13.  Achei que estava abusando da sorte.  Há apenas três dias eu estava completamente travado.  O progresso da minha recuperação tinha sido tão miraculosamente grande que me possibilitou fazer todas essas atividades. Era preciso que eu também fizesse a minha parte, desse a minha quota de sacrifício para uma recuperação plena.  Eu estava meridionalmente tão longe de casa quanto é possível estar.  Decidi ir para o hotel e descansar aquela tarde para estar pronto para estrada no dia seguinte.
Desde o dia que cheguei em Ushuaia e me vi naquele estado, comecei a tomar um antiinflamatório subligual que sempre levo comigo.  Mas só haviam quatro unidades na caixa.  Tomei por três dias e preservei o último como garantia.  Certamente isso contribuiu fundamentalmente para minha recuperação.
Depois que cheguei da navegação e como já estava no centro, antes de voltar para o hotel fiz um programa leve: almocei, dei uma voltinha pelas ruas, fiz algumas fotos etc.  Já sabia que na manhã seguinte iria iniciar meu movimento de retorno pilotando a moto.  Não seria preciso contratar transporte como imaginei no momento da minha chegada àquela cidade.

Finalmente o dia 13 chegou e com ele o meu momento de deixar Ushuaia.  Confirmando as previsões meteorológicas que eu vinha acompanhando, o dia amanheceu feioso.  Chovia bastante e fazia um frio muito intenso.  Carreguei a moto com minhas bagagens e fui para a estrada.  Como já mencionei anteriormente, quando eu saí de casa ainda era inverno.  Iniciei minha viagem rumo ao deserto do Atacama e de lá desci para Ushuaia (sem contar com aquele meu "desvio" voltando ao Brasil).  Estão levei comigo recursos para todos os climas, do mais escaldante calor ao mais extremo frio.  Um desses recursos era um traje térmico completo, luvas, jaqueta, calça e uma palmilha para ser colocada no interior da bota.  Esse traje térmico é ligado à bateria da moto através de um controle de temperatura.  Ele é todo conectado entre si por cabos, possibilitando escolher-se individualmente cada um dos itens que o compõem.  Vesti então toda a indumentária para iniciar mais essa parte da minha aventura.  Botei a roupa térmica por baixo da traje de viagem (cordura) que serve ainda como proteção física, e por fim a capa de chuva, enclausurando todo o conjunto.  Porém antes de fechar a jaqueta e a capa de chuva aumentei a graduação da roupa térmica, preparando-me para enfrentar debaixo de chuva aquele dia gélido.  Em instantes estava passando pelo mesmo portal que passara dias antes em sentido oposto, deixando o fim do mundo cada vez menor no espelho retrovisor da minha companheira de viagem.  O painel da moto indicava a temperatura ambiente de um grau negativo, imagine a sensação térmica!  A chuva muito forte e a temperatura tão baixa fizeram a viseira do meu capacete embaçar.  A viseira é dupla exatamente para impedir esse tipo de ocorrência então “teoricamente” isso não deveria acontecer mas... aconteceu.  Pouco mais adiante já não era possível ver mais nada, fui obrigado a me utilizar do velho e habitual recurso de abrir um pouquinho a viseira do capacete.  Com a entrada do vento frio no interior do capacete formou-se então uma pequena janela na parte inferior da viseira que com certa dificuldade me permitia ver a estrada.  Nesse momento, de pé no meio da estrada e debaixo daquele aguaceiro, avistei uma oficial da Gendarmeria interrompendo minha passagem, mandando-me parar.  Ela me alertou que a estrada estava em péssimas condições de trânsito devido ao mau tempo, e com possíveis trechos de pista congelada.  Disse também que já havia um grande acidente em pouco mais adiante, mas se assim mesmo eu decidisse prosseguir, que o fizesse com bastante cautela.  Cheguei a pensar em voltar e só seguir no dia seguinte.  Porém me veio à cabeça a imagem de dias antes quando passei pelo Paso Garibaldi.  Lembrei-me que aquele ponto funcionou como uma espécie de linha divisória entre climas.  Quando eu estava indo para Ushuaia foi depois dele que percebi a alteração na paisagem e até mesmo nas condições atmosféricas.  Considerei então a possibilidade de que a partir dali a chance de mudança naquele cenário meteorológico seria grande o que me animou e me deu certa confiança.  Fiquei inclinado a seguir adiante.  Pensei, pensei... me lembrei que já tinha feito pelo Booking.com a reserva do hotel em El Calafate e, mesmo com a margem de segurança que sempre dou, não dava para já de início gastar um dia.  E o prognóstico era de chuva por vários dias na região de Ushuaia.  Eu sabia disso.  Eu acompanho os boletins e a previsão do tempo todos os dias quando estou na estrada.  Talvez de nada adiantasse deixar para sair no dia seguinte pois a situação poderia estar até mesmo pior.  Decidi então que iria seguir adiante.  Foram cerca de 150 km de verdadeiro sufoco, mas depois do Paso Garibaldi minhas previsões se confirmaram e a chuva foi aos poucos ficando fraca até que parou restando então apenas o frio.


Eu já saí de Ushuaia com a intenção de naquele dia seguir até Cerro Sombrero, cidade às margens do Estreito de Magalhães.  Ia pernoitar por lá e deixar a travessia de balsa para o dia seguinte.  Mas, como não podia deixar de ser, no meio do caminho fui alterando minha ideia.  Quando cheguei em San Sebastián para abastecer vi que havia um hotel anexo àquele posto de gasolina da ACA onde havia abastecido dias antes e decidi ficar por ali mesmo.  Deixei os cento e muitos, quase 200 km de rípio até Cerro Sombrero para a manhã do dia seguinte quando já estaria ainda mais descansado.  Eu me sentia melhor da coluna e normalmente na primeira parte do dia os ventos são menos intensos.




















Canal de Beagle














Deixando a Tierra del Fuego

Na manhã seguinte o tempo estava legal.  Estava com céu encoberto, porém parecia estar firme.  Dava para ver que a chuva estava por ali, rondando pelos arredores.  Mas sem um ponto definido, não dava para saber se e quando ela poderia me alcançar.  O quarto do hotel em que fiquei era muito claro.  Normalmente os quartos de hotel têm uma janela em uma das paredes.  Porém neste em especial, o que seria a parede da janela era uma parede toda de vidro.  Do teto ao piso, e de uma parede à outra.  Havia uma cortina própria para proporcionar alguma privacidade e naturalmente também para impedir a entrada da luz mas eu não quis fechá-la de propósito para evitar uma eventual “escorregada” no horário de saída de San Sebastián.  Não me lembrei entretanto que estava entrando o verão e naquela latitude as noites têm no máximo cinco horas de escuridão.  O céu só “apaga” depois de onze e meia e volta logo a “acender” às quatro e meia da madrugada.  Por isso acordei muito cedo, e àquela hora o serviço de café da manhã ainda não havia iniciado.  Fui então aproveitar o tempo para colocar minhas coisas de volta na moto.  Chegando na porta de entrada do hotel vi que estava trancada.  Voltei ao salão principal e procurei no balcão pelas chaves mas não as encontrei.  Percebi então que estava trancado dentro do hotel.  Imediatamente pensei como seria se houvesse uma emergência, um incêndio, sei lá.  De pronto olhei para as paredes de vidro e imaginei a saída...
Na véspera fui atendido por uma mulher, uma “redondinha” jovem senhora, muito maquiada, que estava em pé do lado de fora junto a uma outra porta que me pareceu ser uma porta de serviço porque depois de perguntar a ela sobre vaga para pernoite fiz menção de entrar no hotel por ali e ela me indicou a porta principal (aquela mesma que agora encontrava-se trancada).  Lembrei-me disso e atravessei o salão do restaurante, caminhei cozinha adentro e depois de passar por um pequeno corredor lá estava a tal porta de ontem.  Meti a mão na maçaneta e depois de um pequeno giro a porta se abriu.  Estava livre!  Peguei minhas coisas e comecei a arrumar na moto.  Numa das minhas passagens pelo interior da cozinha me deparei com a figura simpática da atendente que acabava de acordar.  Mas mesmo àquela hora já estava completamente “montada” a sua produção cosmética.  Parecendo o rosto de uma gueixa. 

Preparou meu “desayuno”, paguei e fui seguir meu caminho.  Naquele dia eu iria cruzar pouco mais de 180 km por estradas de rípio.  Todo o lado chileno da ilha da Terra do Fogo até Cerro Sombrero e depois, já por asfalto, até Bahía Azul, o porto norte da ilha, para então atravessar mais uma vez o Estreito de Magalhães reentrando no continente em Punta Delgada novamente com destino às terras argentinas.

O controle fronteiriço de saída da Argentina fica distante cerca de cinquenta metros do hotel.  Já o de entrada no Chile está 15 km adiante.  O rípio inicia imediatamente após a edificação da aduana argentina.

Depois de fazer os procedimentos de saída, segui pela mesma estrada que há alguns dias me trouxe até ali.  O trecho entre as duas aduanas é o que mais exige atenção por ter o rípio menos compactado, com as pedras mais soltas.  Mas nada muito exagerado que exija alta perícia ou que cause dificuldade na condução da moto.  Depois de passar pela aduana de entrada no Chile segui 50 km pela Y-79, como se fosse retornar à Porvenir.  Não entrei na Ruta 257 como faz a maioria dos viajantes.  Por lá o caminho é apenas quinze quilômetros mais curto mas o trânsito de caminhões é infinitamente maior.  Numa estrada em que nem sempre temos as condições ideais de condução, onde em muitos casos não temos como desviar o nosso caminho uns poucos centímetros que sejam (para não entrar na área fofa do rípio), é sempre bom evitar as rotas com maior fluxo de veículos.  Principalmente se forem caminhões, que são pesados e têm agilidade limitada.  Para eles, desviar de uma moto que pode ter acabado de escorregar na pista à sua frente pode ser uma tarefa praticamente impossível.  Isso sem contar que os veículos que passam em sentido contrário muitas vezes levantam pedras que nos atingem como verdadeiros tiros.

A estrada até o cruzamento onde viraria para à direita para Cerro Sombrero eu já conhecia.  Foi por ela que eu vim de Porvenir.  Mas somente até o momento em que eu a deixasse e virasse sentido norte.  Dali para frente seria outra vez uma novidade para mim.  Sentia uma grande ansiedade pela incerteza do tipo de piso que iria encontrar.  Como já disse antes, as condições do rípio se alteram a todo tempo, pode ter estado de uma maneira em alguma viagem relatada por um amigo e de outra totalmente diferente poucos dias depois.  

Chegando no cruzamento onde viraria à direita a chuva finalmente começou.  Naturalmente a ansiedade aumentou pois se já havia havia a incógnita das condições da pista, foi agora adicionada à chuva que se iniciava e poderia alterar totalmente o cenário dali para frente.  Mas literalmente quem está na chuva vai se molhar.  E foi isso que aconteceu.  Inicialmente ela veio um pouco mais forte mas logo amenizou e ficou aquele chuvisco fino e constante.  Felizmente não fez diferença nenhuma para a condução da moto.  O piso estava muito bom, bem compactado, com pouquíssimos trechos de pedras soltas.  O movimento na estrada era quase nenhum, cruzei com uns cinco carros no máximo.  Apenas nos quilômetros finais, onde imagino ser uma espécie de conexão, uma parte comum às duas opções de acesso a Cerro Sombrero, passei a dividir a estrada com diversos caminhões.  Mas isso representou a décima parte de todo o trajeto.  Mais ou menos duas horas e meia após ter saído da aduana, o asfalto finalmente se apresentou à minha frente.  O trajeto foi muito tranquilo, sem pontos perigosos ou mais arriscados.  Sinceramente recomendo essa opção para se cruzar a ilha da Terra do Fogo.  Havia uma obra de pavimentação que creio devia ter cerca de 20 ou 30 km.  Somente nessa parte do percurso é que requereu um pouco mais de atenção pois como o asfalto é posto exatamente sobre o leito da estrada já existente, houve a necessidade de deixar a pista e usar um caminho paralelo, um desvio, que não tem a mesma qualidade do piso da estrada principal.  No meu caso especificamente por estar de moto ainda ficou um pouco mais crítico porque a chuva formou aquela lama fina e escorregadia.  Mas no geral foi bem mais tranquilo do que eu pensava que seria.

Mais cedo na saída do hotel eu havia deixado os pneus com apenas 20 PSI para cruzar o trecho de rípio.  Agora no asfalto era preciso voltar à calibragem normal de 33 PSI.  Deixei então a estrada e entrei em Cerro Sombrero à procura de um posto para abastecer a moto e encher os pneus.  Por precaução quis logo garantir o combustível.  Ainda estava no Chile, e (ao contrário da Argentina) naquele país nunca houve dificuldade para comprar gasolina.  Em pouco tempo estaria entrando em terras argentinas e já queria fazê-lo com tanque cheio.  Após o abastecimento procurei pelo ponto de ar e o avistei trinta metros adiante da bomba de combustível.  Liguei a moto e me dirigi para lá.  É, tive de usar o motor, com a moto tão carregada não dava para a ficar empurrando a moto para lá e para cá.  Ainda mais com tanta dor nas costas como eu estava.  Meu estado havia melhorado se comparado com a absoluta falta de condição a que eu me encontrava quando cheguei em Ushuaia, mas ainda estava muito longe de estar me sentindo bem ou normal.  Cada vez que tinha de movimentar a perna esquerda, seja para tirar do chão e apoiar na pedaleira, ou para simplesmente caminhar, era tudo feito com muita dor e sacrifício.  Parei a moto junto à plaquinha indicativa.  Porém vi que assim como em Ushuaia, o ponto de ar também não dispunha de manômetro.  Apenas a mangueira enrolada numa pequena placa escrito: “aire”.  Já fazia tempo a última vez que tinha visto um manômetro...  Contudo, como que prevendo o futuro, naquela tarde de andanças pela cidade em Ushuaia alguns dias antes, eu havia comprado por segurança uma “caneta” daquelas que os borracheiros usam para checar a calibragem dos pneus.  A moto por sua vez também indica no painel a pressão de cada um dos pneus.  Pode parecer excesso de precaução mas devo ter trazido esse critério cauteloso da minha vida náutica onde se costuma dizer que "quem tem dois tem um; quem tem um não tem nenhum".  Não há como negar que é no mínimo curioso.  Como será que as pessoas fazem por aqui?  Será que elas enchem os pneus e dão aquela apertada com o polegar como se fossem bicicletas?  Estranho, muito estranho.

Dessa vez eu iria atravessar o Estreito de Magalhães pela parte da ilha mais próxima do continente.  Saindo de Bahía Azul para Punta Delgada Essa travessia que eu faria agora seria de apenas trinta minutos e com ofertas ininterruptas a cada meia hora, ao contrário  da outra única opção de saída da Terra do Fogo, com apenas uma viagem diária de duas horas e meia de duração entre Punta Arenas e Porvenir.

Quando fui chegando no porto de Bahía Azul, já na reta que leva à balsa avistei uma longa fila de espera.  Foram quatro ou cinco viagens antes da minha vez chegar.  A moto ocupa um espaço tão reduzido que não sei porque eles não liberam as motos para ingresso imediato.  Mas como isso não ocorreu fiquei obedientemente aguardando a minha hora de embarcar.  Dessa vez não houve compra de bilhete antecipado.  A operação era feita a bordo, durante a travessia.  Depois de estacionar a moto no local indicado pelo marinheiro, fui perguntar se não iria fixar a moto com as correias.  Ele me garantiu que as condições do estreito estavam ótimas e que seria muito tranquilo, sem necessidade de usar a cintas.  Como não havia outro jeito confiei no cara.  Deixei a moto e fui me colocar numa nova fila que se formou para o pagamento.  Cada um se apresentava ao cobrador que ficava sentado atrás de uma mesa dentro de uma pequenina sala, e informava o seu veículo para que a figura então anunciasse o valor.  Quando finalmente chegou a minha vez disse a ele que eu estava de moto e ele fez uma careta junto com um aceno de mão me mandando voltar e nada pagar.  Dei meia volta e subi para um pequeno espaço com poltronas pois minhas costas insistiam em me lembrar que eu ainda não havia me liberado da enfermidade que nelas se instalara, já estavam pedindo descanso.

Minha meta para aquele dia era Rio Gallegos, cerca de 120 km do desembarque em Punta Delgada.  Eu já tinha rodado cerca de 180 km de San Sebastián até Bahía Azul, o ponto de travessia.  No total seriam apenas trezentos quilômetros.  Todavia quando planejei a rota do dia eu tinha muitas incógnitas, eram muitas as variáveis:  sabia que não era possível determinar quanto tempo eu levaria para cruzar a parte de rípio pois não sabia em que condições estaria aquele piso.  Sabia também que além do tempo de espera da balsa e da travessia propriamente dita ainda teria de passar por aduanas, fazer os trâmites de saída do Chile e de entrada na Argentina.  Isso tudo era uma grande interrogação e poderia me consumir o dia todo.  Certamente se eu estivesse viajando com mais alguém iria ser questionado pela “economia”.  É verdade, se tudo correr bem, fluindo como sempre se espera que aconteça, chegaria ainda cedo em Rio Gallegos.  Mas se qualquer uma dessas variáveis demorasse mais do que o previsto eu poderia não ter como chegar dentro do prazo em El Calafate, cidade onde já tinha feito reserva num hotel.

Eu costumo ver as coisas como escolhas.  Prefiro escolher ser prevenido do que escolher ser mais arrojado (para não dizer negligente).  Se tudo correr como se deseja, sem nenhum problema ou atraso, com a constatação de que não precisava ter sido tão prevenido, vem sempre a ideia de que não havia a necessidade de ter tomado tantos cuidados.  Mas se por qualquer motivo não der certo, mesmo tendo sido tão prevenido, a sensação que retorna é sempre menos implacável e causa menos efeitos colaterais que o insucesso por ter optado pela escolha "arrojada".



Pequeno Parêntese

Fazendo aqui um pequeno parêntese, para falar a verdade eu nem compreendo bem como é que algumas pessoas saem para fazer determinadas viagens sem a necessária disposição de tempo, vão com tempo muito limitado.  Me parece que a coisa quando é feita assim é mais para cumprir tabela e entrar para o currículo de feitos e conquistas do que para curtir e realmente conhecer o que se está visitando.  Há pessoas que mais parecem motoristas de ônibus rodoviário, rodando mil quilômetros ou mais por dia, fazendo praticamente o que chamamos de “bate-volta” só para “ter ido” àquele determinado destino.  Se não dá para ir com mais tempo é melhor optar por destinos mais próximos do que cruzar países sem a possibilidade de parar na estrada, nos pontos rústicos e pitorescos, além das óbvias atrações turísticas.

Em cada lugarejo que deixamos desaparecer no retrovisor existem milhares de coisas,  de pessoas, de hábitos e de costumes.  Conhecimentos que poderiam nos enriquecer com lembranças que ficariam marcadas para sempre em nossas mentes. 


Sei de pessoas que foram ao Atacama mas que (a partir da saída do Brasil) no segundo dia estavam em Salta e no quarto, ou até mesmo no terceiro já estavam em San Pedro de Atacama.  Eu comparo isso a ir de avião.  Nesse tipo de transporte obviamente não conhecemos nada dos lugares por onde passamos até a chegada ao destino.  Para ir dessa forma talvez seja realmente melhor ir de avião e alugar a moto por lá.  Fiz exatamente isso quando fui cruzar a Rota 66 de Chicago até Los Angeles.  Teria sido muito mais legal ter ido e voltado de moto desde minha casa.  Mas o tempo gasto seria infinitamente maior que os 17 dias usados naquela viagem.  Foi a maneira que encontramos para percorrer toda a extensão da “Estrada Mãe”, como é conhecida nos Estados Unidos.  Se dividirmos os pouco mais de 4000 km rodados pelos 17 dias teremos algo perto de 300 km por dia.  Isso nos permitiu conhecer parques, sítios históricos, pontos turísticos etc.  Além de termos também podido fazer desvios como por exemplo a ida até Santa Fé, cidade onde ficamos duas noites aproveitando ao máximo o lugar.

Por isso é que não compreendo como algumas pessoas saem para cumprir determinados roteiros sem o tempo mínimo necessário.  Nessa situação sinceramente acredito ser melhor a opção de ir de avião e alugar a moto por lá.

Para ir de moto é fundamental realmente aproveitar cada quilômetro rodado desde a saída de casa, de outra forma não haveria a frase que diz: “Indo de carro a diversão começa quando chegamos ao destino; indo de moto a diversão começa quando saímos de casa.”

Sei que não agrado a todos pensando desta forma, mas lastimo muito quando sei de alguém que passou por tanta atração e informação sem o tempo ideal e suficiente para aproveitá-las.




apartamento do hotel do posto do ACA em San Sebastián


somente ar, sem manômetro






De volta ao Continente

O desembarque no continente foi tranquilo.  Eu costumo deixar sempre os mais apressados seguirem seus ritmos acelerados.  Seja num desembarque como esse ou seja (por exemplo) na liberação de um bloqueio na estrada em decorrência de algum acidente ou qualquer outro motivo.  Entendo que é melhor não estar na frente, no caminho desses veículos, atrapalhando o fluxo desejado por seus motoristas.  Se for oportuno, às vezes até paro a moto pelo tempo que entendo ser suficiente para que eles sigam em paz e me deixem também em paz.

Assim que deixei a balsa, ainda em território chileno segui pela Ruta 257 até que encontrei o entroncamento com a Ruta 255, estrada transversal que me levaria à Ruta 3 através do Paso Integración AustralA Ruta 3 é uma também mítica estrada argentina.  Digo "também mítica" porque a Ruta 40 é considerada a mais desafiante das rodovias daquele país.  A 40 corta praticamente todo o território argentino de norte a sul.  Grande parte de sua extensão não é asfaltada, tornando-a assim motivo de conquista pessoal para quem a enfrenta.  Já a Ruta 3 é a rodovia mais austral do planeta.  Liga a capital Buenos Aires ao “Fin del Mundo”.

Relembrando: minha meta para aquele dia era chegar a Rio Gallegos.  Faltavam apenas uns 120 km.  Mas tinha ainda a passagem pela aduana, com os trâmites de saída do Chile e de entrada na Argentina.  Eu não sabia o que me esperava por lá.

Cerca de 50 km depois de Punta Delgada está a divisa entre os dois países, e logo a seguir o complexo fronteiriço Paso Integración Austral.  Assim como nos Orcones do Paso Cristo Redentor, os trâmites de saída e entrada são feitos na mesma edificação que abriga as equipes de funcionários dos dois países.

Quando me aproximei vi que havia uma espécie de fila ainda na chegada, no perímetro do prédio.  Uma fila meio bagunçada com vários carros tumultuando o acesso ao local.  Não dava para entender bem onde estava o final da fila.  Em alguns instantes percebi que os veículos na verdade estavam abandonados por seus ocupantes, estavam vazios.  Vi que a coisa se dava apenas lá dentro, era preciso deixar os carros, as motos etc. e prosseguir a pé.   Procurei um cantinho para minha moto no final da "fila" e fiz o mesmo, iniciei a caminhada até lá para fazer os procedimentos aduaneiros.  Lá dentro havia um grande salão com muita gente.  A fila era quase organizada.  Digo quase porque havia um intrigante roteiro a ser seguido: estranhamente o primeiro guichê a ser visitado não era o mais próximo da porta de entrada, ficava fisicamente depois do segundo.  Com isso a fila formava uma espécie de nó na sua extremidade pois depois de se passar pelo segundo atendimento era necessário cruzar a fila do primeiro para seguir adiante.  Depois de vencido esse pequeno percalço, agora era preciso atravesar todo o salão para passar por mais dois guichês lá na outra extremidade.  De fato a passagem pelo Paso de Integración Austral tem tudo para ser tranquilo, se considerarmos as dimensões e as condições para se montar uma boa logística.  Mas na realidade a coisa não acontece dessa forma.  É verdade que existem momentos de maior ou de menor fluxo de turistas passando por lá, mas numa situação de alta temporada como foi esta que passei, se houvesse um pouco mais de organização a fluidez seria bem maior e tudo menos confuso e menos demorado.  Minha preocupação agora não era mais com o tempo pois vi que teria folga para chegar a Rio Gallegos em condições de buscar hotel com tranquilidade.  Minha preocupação agora era com minhas coisas expostas sobre a moto lá fora, à uma considerável distância.  Nunca se sabe...

Depois de várias dezenas de minutos voltei para minha moto e vi que minhas "tralhas" ainda estavam todas em ordem, da mesma forma que as deixei. 

Em pouco mais de uma hora estava entrando em Rio Gallegos.  Não havia feito nenhuma reserva para aquela cidade então como de costume dei aquela minha voltinha de reconhecimento e parti para encontrar hotel.  Busquei pelo GPS e escolhi pelo nome.  Chegando ao estabelecimento parei a moto e fui ver se havia vaga.  Um retumbante “no hay ninguna habitación disponible”.  Voltei à moto desolado, com receio de novamente enfrentar dificuldades nessa procura.  Mas avistei um pouco mais adiante e do outro lado da rua um outro hotel.  Deixei minha moto onde estava e fui andando até lá.  Já voltei para pegar a moto com a chave do quarto na mão.  Ainda estava cedo, devia passar um pouco das três da tarde.  Era dia 14 de dezembro, aniversário do meu pai.  Completava 88 anos naquele dia.  Depois de tomar meu banho para retirar toda a poeira e lama que trazia comigo pela travessia de quase 200 km de rípio, inicialmente poeirenta e depois sob chuva, fiz uma ligação para o Brasil.  Minha mãe atendeu e como já imaginava foi difícil conseguir que ela liberasse o telefone para eu falar com meu pai.  Acho isso engraçado.  Mesmo naquele momento eu já estando com 55 anos completos, ouvi deles as mesmas habituais observações e recomendações que ouvia na infância, na adolescência, na idade jovem etc.

Encontrei todos por lá festejando com meu velho pai.  Depois de falar com ele ainda falei com minhas filhas, minha irmã e minha ex mulher.  Só não pude falar com meu filho pois ele não estava por lá.

Essa minha viagem teve esse ponto, digamos, pouco social.  Em virtude do tamanho dela, ultrapassando os 40000 km, e do tempo gasto pra cumprir esse percurso com calma e aproveitando ao máximo, fiquei cerca de quatro meses fora o que me fez estar ausente no aniversário de minha irmã, no de meu pai, nas festas do natal e do ano novo e no aniversário da minha mãe.  Eu na verdade viajo o ano todo, sempre.  Porém nessa situação específica, pela duração desse roteiro, não foi possível fazer as rotineiras adaptações e intercalações das viagens com as datas importantes para a família.

Mas acho que fui bem compreendido por todos e não sucederam-se mágoas.

Depois de cumprir essa obrigação social e sentimental, consegui desligar o telefone e saí em busca de comida.  Eu estava apenas com o café da manhã que me havia sido servido por aquela figura simpática e redondinha lá em San Sebastán.

Chovia bastante lá fora o que me desanimou um pouco a sair.  Além do próprio incômodo de caminhar na chuva ainda havia a minha pouca mobilidade causada pelo problema na coluna.  Mas passando pelo átrio da recepção vi que agregado ao hotel havia um restaurante e fiquei por ali mesmo.

Já estava no final de minha refeição quando entra no restaurante uma idosa senhora e assume uma mesa em frente a que eu utilizava.  A garçonete veio perguntar a ela quantos lugares seriam.  Ouvi quando ela disse que não sabia ao certo.  Pensei comigo “coitada, deve estar esperando uma ou duas amigas para um chá.  Nessa tarde tão chuvosa não vai vir ninguém...”  

Mas meu camarada... aos poucos foi entrando tanta velha que eu pensei que estava dentro do filme Cocoon antes da concha!

Inflamou o local de tanta velha, a mais nova devia ter três vezes a minha idade!  E era uma barulheira de deixar recreio da quinta série com vergonha da própria incapacidade sonora.

Acabei minha refeição e saí dali o mais rápido possível pois a barulheira era tanta que eu não estava conseguindo ouvir meus próprios pensamentos.


Depois que a chuva parou dei uma breve voltinha a pé e voltei para o hotel a fim de dar descanso à minha coluna pois meu trajeto do dia seguinte seria puxado.  Tinha como meta a cidade de El Calafate, onde já havia feito reserva num bom hotel.  Mas iria até lá passando por Rio Turbio e pela desafiadora Ruta 40 num dos seus muitos trechos nada amistosos.

Saí cedo do hotel no dia seguinte e tudo correu muito melhor do que imaginei.  Lindas paisagens e nada de chuva para dificultar ainda mais as condições da estrada.  Foi muito agradável essa parte da viagem.  Em algumas horas estava chegando ao meu destino do dia.  Para não dizer que foi tudo ótimo, apenas uma coisa me pegou de surpresa: o frio (mais uma vez).  Eu não esperava encontrar tanto frio assim.  Pouco antes da Ruta 40 encontrar com a Ruta Provincial 9, há uma serra que me pareceu ser infinitamente gelada.  Mas muito gelada mesmo.  Fiquei preocupado com a aproximação de El Calafate pois se ali já estava tão frio assim imagine próximo ao lago e aos glaciares!   Mas quando a descida começou a temperatura foi retornando aos já habituais e (à essa altura dos acontecimentos) confortáveis 12 ou 13 graus Celsius.

Interessante o que ocorreu nessa viagem em virtude das circunstâncias da mesma.  Existe aquela frase de que "a necessidade fez o sapo pular".  E eu fui aos poucos alterando meus limites e meus valores.  Lembro-me de em outras ocasiões praguejar muito quando encontrava temperaturas como 11 graus (por exemplo quando ia a Curitiba).  Mas àquela altura da viagem quando o termômetro da moto indicava temperaturas de dois dígitos eu gritava de alegria no confinamento de meu capacete.  A partir de dez graus era para mim motivo de comemoração...

O tempo contribuía, estava um pouco ensolarado, assim meio entre nuvens, mas isso garantia um dia claro e brilhante, o que tornava ainda mais exuberante toda aquela tsunami de belezas naturais.

Mesmo já tendo passado por locais igualmente belíssimos como a região chilena de Los Lagos, com a amável Frutillar, e também pelas aconchegantes Villa Pehuenia e Moquehue, cercadas de inúmeros lagos inacreditavelmente azuis, a chegada a El Calafate com a visão do Lago Argentino é algo indescritível.  Se eu tentasse aqui descrever iria pecar por simplificar demais pela insuficiência de detalhes.  Existem coisas na vida que não há como descrever.  Tente explicar como é o sabor do chocolate.  Não dá, só provando para saber.  A mesma coisa acontece com determinadas paisagens, não há como relatar.  Tem de ver, tem de sentir...

Rio Gallegos



Caminhando no gelo

El Calafate é muito bem cuidada.  Chega-se por uma estrada que desce até a cidade que fica no fundo de uma espécie de vale.  Tem um astral muito bom, com muita movimentação de turistas.  Assim que cheguei ao centro peguei a via principal para dar aquela minha volta básica de reconhecimento.  Depois de um pequeno giro (também não daria pra ser grande pelas dimensões do lugar) parei para buscar no GPS pelo meu hotel.  Tinha feito reserva antecipada e não havia motivo de preocupação, meu cantinho na gelada El Calafate estava assegurado.  Assim como em Ushuaia fiz reserva num bom hotel.  Como já disse antes, eu tenho um método próprio de classificação para os dias da viagem em três tipos determinados: 1) dias de deslocamento com pernoite simples sem nenhum interesse pelo local; 2) dias de deslocamento com escolha das cidades para pernoite com visita às atrações locais; e finalmente 3) dias de turismo e visitação.

Nos dias de deslocamento simples eu não me preocupo com as instalações de onde vou pernoitar.  Evidentemente que não fico em qualquer espelunca (salvo algumas exceções que mencionarei adiante), mas não faço a menor questão de ostentações e confortos supérfluos.  A ideia nesses dias é apenas uma cama, banheiro limpo e café da manhã (mesmo na Argentina que parece existir um limitado padrão de café preto e duas medias lunas).  Por exemplo se eu estiver indo do Rio de Janeiro para o nordeste com parada em Salvador.  Seguindo meu ritmo e critério, eu faria meu primeiro pernoite em Linhares (ES), a cerca de 650 km do Rio.  Nessa cidade seria o caso número 1: um pernoite simples.  Já no outro dia poderia escolher para o pernoite seguinte a cidade de Ilhéus que pelos seus atrativos entraria na classificação número 2: dia de deslocamento com escolha da cidade para pernoite pelos seus atrativos.  E finalmente Salvador seria o caso número três: dias de turismo e visitação.  Nesse último caso a escolha do hotel tem importância maior pois além de ficar mais tempo na cidade também há a demanda de informações turísticas e a facilitação para uma eventual contratação de passeios etc.

El Calafate assim como Ushuaia estavam na minha cabeça e projeto de viagem como cidades para turismo e visitação.  Um bom hotel nessas cidades fez parte do meu planejamento.  Mas é hotel no máximo 4 estrelas, apenas para me proporcionar um pouco de conforto, com ambiente aquecido, bom café da manhã, quarto e banheiro arrumados e limpos etc.

No meu caso foi possível apenas porque ainda estava contando com o câmbio extremamente favorável para essas pequenas extravagâncias.  Eu havia comprado a moeda argentina a trinta e seis centavos de Real.  E àquela altura o Peso já estava valendo trinta centavos de Real, e a desvalorização era constante.  Ou seja, pouco menos de um terço da nossa moeda.  Ficar três dias num hotel quatro estrelas em El Calafate por 207 dólares é moleza demais!

A rua que me levou ao Terrazas del Calafate é uma subida em rípio com o hotel no final dela.  Fica no alto o que me proporcionou uma bela vista do Lago Argentino nos três dias que fiquei por lá.

Assim que parei a moto vi que havia um simpático cachorro deitado diante da porta principal do hotel.  Saltei da moto e ele instantaneamente levantou-se me olhando e acompanhando meus movimentos de desembarque.  Não retirei de imediato o capacete e percebi que o cão me olhava apreensivo, conheço esse comportamento.  Comecei a caminhar em direção à porta e o coitado começou a movimentar-se a fim de manter uma distância segura de mim, estava com medo de mim.  Parei e retirei o capacete.  Olhei amistosamente para ele e vi suas orelhas relaxarem e o rabo balançar.  Havia “conquistado”  o bicho.  Quando cheguei junto a ele fiz um carinho e a partir daí ele me acompanhou o tempo todo, inclusive hotel adentro.  Quando cheguei na recepção ele se deitou aos meus pés.  O tempo todo eu pensei ser uma espécie de mascote do hotel.  Não era um cão mestiço, era um belo Golden Retriever.  Mas assim que a recepcionista o viu, o enxotou para fora do hotel.  Depois vim a saber que se tratava de um cão da vizinhança que de vez em quando ficava por ali.  “Gente” boa o cachorro.

Depois de esvaziar a bagagem e tomar meu banho, pedi um taxi para me levar ao centro e fui dar uma volta a pé pela cidade.  Antes a recepcionista me perguntou se iria jantar no hotel pois teria de fazer reserva.  A exemplo do que fiz em três dos quatro dias que estive em Ushuaia, também jantei no hotel em El Calafate.  Eu acho que em virtude da falta da escuridão noturna naquelas latitudes, a fome só chegava muito tarde da noite, invariavelmente depois das nove.  E salvo em alguma noite que houvesse algum tipo de programação, à essa hora certamente já estaria de volta ao hotel.

Na volta da rua vi que havia um rapaz na recepção em substituição à moça que me recebeu mais cedo.  Solicitei informações sobre passeios para o dia seguinte e contratei a indispensável visitação ao Glaciar Perito Moreno com navegação e trekking sobre o glacial.  É uma programação full day que vale muito a pena.

Jantei e aproveitei uma excelente noite de sono.  Na manhã seguinte estava entrando na van que me levou ao ônibus que foi aos poucos recebendo outros turistas de outras vans, e depois de completo nos levou ao Glaciar Perito Moreno.

O visual é incrível.  Parece e é coisa de cinema.  Uma infinita massa de gelo que nasce nas montanhas e avança através do lago.  Mas é uma visão mais que superlativa, é gigantesca mesmo.  Imagine um bloco infinito em comprimento, da maior largura possível limitada apenas pelas rochas, e com uma altura impressionante que supera em muito os prédios que estamos acostumados a ver nas cidades brasileiras.  É realmente impactante a visão de mais essa obra da natureza.

Depois de algum tempo caminhando pelas várias passarelas dos diversos mirantes, fui tomar um chocolate quente no restaurante do parque enquanto aguardava o ônibus para nos levar ao porto.

Enquanto aquecia o corpo com o conteúdo da xícara me peguei pensando sobre essa minha condição quase permanente de viajante solitário.  O fato de estar aposentado e separado me dá uma condição de liberdade pouco comum.  É sempre muito difícil encontrar companhia com a mesma disponibilidade de tempo para as viagens que costumo fazer.  Então cada lugar que paro para contemplação e cada ponto que visito assume uma dimensão diferente da que teria se não estivesse só.  Fico quase permanentemente em estado de meditação numa contínua e profunda introspecção.  É uma constante "viagem aos interiores da alma".  Na verdade o motociclismo tem essa singularidade.  Mesmo que estejamos em um enorme grupo, enquanto em movimento ficamos restritos aos naturais limites impostos pelos nossos capacetes, de modo geral não há comunicação nenhuma entre os componentes exceto as que acontecem nas paradas que fazemos.  Um grupo de motociclistas estradeiros é plural;  mas composto de vários singulares.

O ônibus buzinou para levar ao porto os que contrataram o passeio sobre a geleira.  Lá pegamos o barco e navegamos entre os enormes pedaços de gelo desprendidos do glacial que boiavam pelas águas do lago.  Quando o barco chegou junto ao imenso bloco, diante daquele paredão congelado é que pude realmente compreender sua dimensão.  Chega a ser assustador...

Depois de algum tempo navegando sempre junto àquele gigante branco azulado fomos desembarcar no outro lado do lago para almoçar as viandas que trazíamos conosco.  Viandas são pequenos lanches preparados pelos hotéis, e que levamos conosco porque não há local para almoço.  Nessa margem do lago o controle para preservação das condições naturais é muito rigoroso.  Só se pode ir acompanhado de um guia e desde o embarque é proibido fumar ou comer e beber qualquer coisa.  O consumo das viandas tem o momento e o local próprio.  Acontece assim que fazemos o desembarque.  Só então depois de nos alimentarmos é que seguirmos para fazer o trekking sobre o glacial.  Há um abrigo para fazemos nossas refeições. Lá há uma espécie de escaninho múltiplo para todos deixarem suas mochilas.  Para o trekking seguimos apenas com a roupa do corpo e as máquinas para registros de imagens.  Caminhamos por uma trilha, uma pequena praia e finalmente chegamos junto ao gelo.  Logo no início há um outro ponto de parada para recebermos um pequeno treinamento com orientações de como agir sobre o glacial, onde e como pisar.  Nesse ponto de parada atamos “grampones” aos nossos calçados para viabilizar a caminhada naquele tipo de piso.

Eu havia levado comigo desde o Brasil uma lata de cerveja Antártica para fazer uma foto e ser consumida quando ficasse gelada pelo gelo glacial antártico.  A marca da cerveja foi escolhida por motivos óbvios.    Antecipadamente lata foi "estrategicamente" camuflada no bolso da minha jaqueta.  Depois que já estávamos sobre o glacial, fiz a foto que desejava e então observei um olhar "sedento" de um dos guias para a latinha de Antártica.  Como não tenho hábito de beber, imediatamente dei a lata para ele.  Mas ocorreu um fato ainda mais legal: depois de cerca de uma hora de caminhada sobre aquela imensidão branca, os guias nos levaram para trás de uma espécie de duna de gelo onde havia um baú com copos e Whisky para todos.  Fizemos um brinde geral num ambiente de muita alegria e descontração.  Ah!  O gelo no copo foi retirado do chão com auxílio de uma picareta.  Sensacional!  E também nesse momento o guia esvaziou a latinha de Antártica...

Assim como outros tantos dias nessa viagem, esse foi um dia intenso de emoções e daqueles que ficam eternamente gravados em nossas lembranças.

Já no hotel depois de uma boa soneca após um banho revigorante, chegou a hora de jantar.  Engraçado é que a coisa acontece meio que por compromisso.  Devido à falta da escuridão noturna nem a fome sabe que já está na hora...

O restaurante do hotel fica em um piso inferior ao da recepção e dos apartamentos.  Como a construção foi feita no alto de uma encosta voltada para o lago, o acesso se dá pela parte de trás, em nível mais elevado.  É uma vista panorâmica, acessível de qualquer ponto o tempo todo.  E duradoura pela constante iluminação natural naquela época do ano.
Eu estava sentado (pela terceira vez) em minha já habitual mesa lá no canto esquerdo do salão, bem na ponta junto à janela.  Na verdade não é bem uma janela, mas uma parede inteira de vidro.  Naquele restaurante só há três paredes.  Onde normalmente seria a quarta parede fica um imenso painel envidraçado propiciando a apreciação constante do belo visual.  O hotel por ter sido erguido numa encosta, é uma construção projetada no espaço.  Isso confere uma sensação um tanto aventureira quando chegamos junto às janelas e percebemos o "chão" em nível tão inferior, tão distante. Enquanto jantava, distraidamente acompanhava com os olhos a movimentação lá em baixo.  Alguns carros na estrada junto ao lago, pessoas caminhando, quando de repente sou surpreendido por um barulho ensurdecedor acompanhado de um sacolejo, no ambiente e nas mesas, que apesar de momentâneo parecia não cessar e se prolongou por uns dois ou três segundos.  O barulho pareceu o de uma imensa porta batendo, com aquele deslocamento de ar habitualmente advindo dessas ocorrências.  Mas teria de ser uma porta muito grande para causar tanto impacto e tanta reverberação, pois tremeu tudo, copos batendo sobre a mesa, barulhos de louça quebrando lá dentro.  Durante alguns segundos pensei em várias possibilidades, pensei até em explosão na cozinha.  Mas logo a seguir a cheff apareceu para ver como eu estava.  Percebi que ela estava tranquila mas me observava com ares de desconfiança.  Na verdade estava curiosa por saber se eu estava bem.  Aproveitei sua presença para perguntar o que foi que houve e ela disse ter sido “un tenblor”.
Perguntei o que era isso e ela repetiu: “un temblor”.  Talvez pela minha fisionomia ela tenha percebido que continuei na mesma, sem entender, então ela completou dizendo: “tenblor, terremoto”.  Só aí me dei conta que tremor em espanhol é tenblor.  Havia ocorrido um tremor de terra, um pequeno terremoto.  E eu ali jantando na maior calma!  Ela disse ser habitual esse tipo de manifestação natural naquela região e que as construções já são projetadas levando essa rotina em consideração.  A terra tremendo e eu ali bem na beirada de um salão sustentado por enormes e longos pilotis, e ao lado de uma gigantesca vidraça...

Para o dia seguinte havia contratado um outro passeio: uma descida rústica de bicicleta do alto da montanha.  Um “Down Hill Cross Bike”.
O início seria normal, junto com todos os demais turistas, mas na hora da descida é que haveria a divisão de quem voltaria no ônibus 4x4 e quem voltaria de bike.
Quando entrei no ônibus vi que só haviam duas bicicletas lá no fundo.  Mas pensei que haveriam outras lá no alto.  O passeio é muito interessante.  O ônibus sobe cada pirambeira que chega a ser inacreditável a façanha.  Muito legal.
Na véspera quando contratei o Cross Bike, eles me avisaram que não era possível levar nada porque poderia molhar e não havia espaço para guardar.  Então infelizmente não levei nenhuma máquina para registrar com imagens.  Assim como também não levei casaco pois, como fazia sol, achei que iria era suar.  Mas até chegar o momento de pegar a bicicleta o ônibus dá muitas voltas, visita muita coisa e passei um frio danado.

Quando finalmente chegamos no ponto mais alto, os demais turistas seguiram no ônibus e eu então vi que o único demente era eu: uma bike para o guia e outra para mim.  Só então pensei: "Não tem mais ninguém?  O que é que eu estou fazendo aqui?  Estou há cerca de noventa dias fora de casa, sobre uma moto, com a coluna me matando de dor e ainda buscando por uma recuperação plena.  E agora inventei de descer esse penhasco, de bicicleta, num frio de congelar pinguim!!!"  Mas só o que posso dizer é que mais uma vez foi ruim mas foi bom...

apartamento do Terrazas del Calafate
meu simpático "recepcionista"


Lago Argentino no visual do apartamento



Glaciar Perito Moreno













"grampones"




essa Antártica viajou comigo por 3 meses para ser gelada pelo gelo antártico


voucher do meu Cross Bike
imagem do folheto indicativo do passeio de subida

folheto indicativo da descida "Down Hill Cross Bike" 


"Em terra de Saci uma calça dá para dois"

Os três dias que estive em El Calafate foram ensolarados.  Mas como diariamente acompanhava a previsão do tempo, eu sabia que na data da minha saída de lá o tempo iria mudar.  Porém como dessa vez meu retorno seria todo por asfalto isso não me preocupava em nada.  Eu pretendia passar direto por Rio Gallegos e só parar em Puerto San Julian.  Seriam cerca de 620km.  Inicialmente pensei em fazer um trajeto mais ousado e seguir pela tosca Ruta Provincial 9, que me levaria diretamente da Ruta 40 para a Ruta 3 e economizaria cerca de 200 km.  Mas fui veementemente desaconselhado por todas as pessoas a quem pedi sugestões de itinerário.  Na verdade nem era o meu espirito aventureiro que estava me instigando a seguir por aquela rota, eu apenas não queria ter de voltar tudo até Rio Gallegos para depois então subir a Ruta 3.  Mas diante de tantas recomendações para não ir pela RP 9, e devido ao mau tempo que já se anunciava, decidi acatar os aconselhamentos e seguir pelas vias mais “normais”.

Dia seguinte lá estava eu retomando minhas rotineiras tarefas de acomodar toda a bagagem na moto. Vi que o tempo estava realmente sombrio, mas havia em mim uma ponta de esperança (quase uma certeza) de que logo adiante eu deixaria para trás essa desagradável condição climática.  Dessa vez, assim como fiz na minha despedida de Ushuaia, me preparei para a chuva e o frio.  Não queria passar pelo mesmo desconforto que tive no meu percurso entre Rio Turbio e El Calafate.

Logo que saí dos arredores da cidade a chuva começou a ficar mais intensa.  Junto com ela veio o frio.  Eu estava com a roupa térmica ligada por baixo do conjunto de cordura mas em alguns minutos comecei a achar que ela tinha apresentado defeito.  Não estava aquecendo o suficiente para aquele frio.  O controle do termostato estava lá por dentro, fixado à cintura da calça e por baixo da jaqueta e da capa de chuva.  Eram várias camadas impedindo minha mão de alcançar satisfatoriamente os botões.  Não me era possível aumentar ou mesmo ver se os leds estavam acesos.  O vento já incomodava bastante e a chuva havia se transformado num verdadeiro temporal.  Em mais alguns minutos uma espécie de neblina densa se instalou sobre a pista.  Todas essas condições juntas: frio, ventos fortes, neblina e uma chuva implacável, começaram a dificultar demais a condução da moto. 

Fui sendo aos poucos obrigado a reduzir a velocidade a fim de tentar manter um mínimo de segurança.  Até que me vi guiando a não mais que 50 km/h, no meio do nada, numa constante parede de água, sentindo frio e sendo sacudido pelo vento.  Decidido vi que teria de abandonar a ideia de seguir até Puerto San Julian.  Definitivamente teria de achar onde parar, não estava nada seguro continuar.

Segui naquele sufoco como pude, nem sei por quanto tempo.  Mais adiante passei por uma placa que dizia “La Esperanza 30 km”.  Não era possível enxergar o painel da moto para verificar o odômetro, mas eram só 30 km!  Só que a 50 km/h (ou até menos) a coisa custou uma eternidade para chegar.  Mas o nome era bastante apropriado, era minha esperança que em La Esperanza houvesse abrigo para mim.  

Digo isso porque durante essa viagem vi por diversas vezes placas indicativas de nada, absolutamente nada.  Havia a placa indicando o nome do lugar e só, apenas a placa em puro deserto!
Muitos minutos adiante mais uma placa indicando La Esperanza a 20 km.  Eu pensei: só andei dez quilômetros?  Não pode ser!  Rodei, rodei, rodei.  Depois de muito tempo mais uma placa com a indicação de 10 km.  A coisa estava sofrida, difícil de acontecer.  Me sentia como aquele burrico que anda atrás de uma cenoura que jamais alcançará porque está pendurada em uma varinha amarrada a ele.  La Esperanza nunca chegava!  Mas depois de muita aflição aos poucos vai se materializando e surge na minha frente uma espécie de sombra que sugeria ser uma edificação.  Digo surge porque devido à neblina e à massa de água que despencava, as coisas só eram percebidas a poucos metros.  Era um posto YPF.  Me aproximei do frentista e perguntei se havia algum hotel por ali.  Ele apontou para um restaurante no outro lado da pista.  Aparentemente La Esperanza se resumia a isso: um posto de combustíveis de um lado da estrada, e um restaurante do outro lado.  

Cruzei a pista e fui até o restaurante.  Àquela altura dos acontecimentos eu já queria garantir um quarto para passar a noite.  Ainda estava cedo.  Apesar do interminável tempo que levei até ali só havia rodado 160 km.  Quase a quarta parte do que havia planejado para aquele dia, mas naquelas condições estava impossível continuar.  Era preciso parar, mesmo àquela hora, assim ainda tão cedo.  Certamente ainda não era nem uma hora da tarde.  Se o tempo melhorasse eu poderia até mesmo seguir sem pernoitar ali.  Nesse caso a noite só traria o problema do frio mais intenso mas não da escuridão noturna porque ela simplesmente não acontece.  Mas havia também a possibilidade de o tempo permanecer daquela forma.  Queria então já garantir meu espaço antes que outros o fizessem e eu ficasse de fora!

à direita o posto; com telhado azul o restaurante e no alto os dois galpões

Dentro do restaurante a temperatura estava agradável, contrastando-se favoravelmente à que deixei do outro lado da porta que se fechou atrás de mim.  Estava encharcado e com bastante frio, intimamente torcia muito para que houvesse uma vaga para mim.  Dei uma breve olhada por todo o salão e verifiquei de imediato que se tratava de uma espécie de misto de restaurante com armazém de secos e molhados.  Além de naturalmente servir como recepção do “hotel”.  

Cheguei junto ao jovem que estava do outro lado do balcão de cabeça baixa escrevendo alguma coisa e perguntei se havia “una habitacion” para eu passar aquela noite.  O cara levantou a cabeça e "congelou", virou estátua.  Imóvel, sem mexer absolutamente mais nenhuma parte do corpo além dos olhos fitou-me fixamente com uma fisionomia que de imediato não consegui traduzir bem mas me pareceu que era fisionomia de espanto, como se não acreditasse no que acabara de ouvir.  Em seguida me pareceu um tanto absorto, como se estivesse num pensamento tão profundo que margeou um rápido transe.  Depois, ainda sem mexer um músculo sequer, foi vagarosamente descendo o olhar esquadrinhando e assimilando meus trajes até chegar às minhas botas que já centralizavam uma considerável poça d’água em constante evolução.  Intuitivamente (ainda antes de me responder e de se mexer), através do vidro da janela buscou com os olhos a minha moto que com galhardia mantinha-se imponentemente altiva, como um puro-sangue indiferente ao temporal que caia lá fora.  Enquanto isso, fruto da calefação dentro do estabelecimento, eu ia aos poucos diminuindo a intensidade dos meus involuntários tremores de frio e olhando para ele aguardava pelo final daquele estado de catatonia para então obter a resposta à minha pergunta.  Me pareceu que seria uma resposta simples: um sim ou um não.  Há ou não há um apartamento vago.  Objetivamente simples.

Mas tudo o que consegui dele para aquele momento foi um rodopio e um “vou verificar” enquanto rapidamente sumia pela porta que conectava a área do balcão às entranhas do estabelecimento.  Fiquei por ali me abrigando da tempestade enquanto torcia por uma resposta positiva.  Nesse meio tempo fui abordado por um senhor que também estava fazendo uma pausa por ali e que me mostrava uma foto minha feita em seu celular.  Ele exibia a foto como quem apresenta um troféu.  Bastante empolgado ele dizia que ficou muito impressionado como eu suportei aquele vento com toda aquela chuva.  Insistia em chamar a atenção para o quanto a moto estava inclinada para o lado mesmo guiando numa reta.  Dizia que estava vendo a hora do vento me derrubar e que estrategicamente posicionou seu carro atrás de mim, por vários quilômetros, para me resguardar de ser abalroado pois disse que ele mesmo só me viu quando já estava extremamente próximo da moto.  Eu pensei comigo: “e eu não vi nada disso...”.  Certamente no momento em que aquela foto foi feita eu tinha meus olhos totalmente dedicados a tentar enxergar alguma coisa adiante de mim naquele penoso trajeto dentro de um temporal patagônico.  Pedi a ele que transferisse a foto por bluetooth do aparelho dele para o meu celular.  Ele sorriu e não sei se não compreendeu, mas enquanto eu percebia o regresso do rapaz do balcão, ele da mesma forma súbita que surgiu também desapareceu.  Fiquei sem o registro daquela angustiante situação.

Cheguei junto ao balcão e perguntei se havia ou não vaga para mim, se eu iria ou não poder pernoitar por ali.  Ele me disse que estavam preparando o quarto para eu ir conhecer.
Pensei comigo: “estranho, será que o hóspede anterior acabou de deixar o quarto e ainda não houve tempo para arrumar?”.   

Lá dentro do restaurante a temperatura era outra, havia calefação e também várias pessoas.  Isso por si só já deixa o ambiente agradável.  Mas eu estava encharcado e apesar do frio ter ficado lá fora meu corpo ainda estava gelado.  Como eu tinha de aguardar a arrumação do quarto pedi ao rapaz um chocolate quente na tentativa de me aquecer mais rapidamente.  Vi quando ele pegou uma xícara e a encheu de leite.  Em seguida foi junto àquela máquina de café expresso “afogou” no meu leite aquele bico por onde sai vapor.  Depois de deixar algum tempo borbulhando interrompeu o negócio e fez movimentos de me trazer a xícara com o leite já bem quente.  Mas enquanto ele dava a volta no balcão eu pensava: “e o chocolate, é só leite puro?”.  Quando ele apoiou aquela produção sobre a mesa eu vi que no pires ao lado da xícara haviam duas estreitas barras de chocolate.  Devo ter passado alguns segundos olhando para aquilo antes de compreender que tudo agora dependia apenas de mim.  Peguei então os lingotes de chocolate e cuidadosamente os mergulhei no leite quente.  Mexendo, mexendo e em alguns segundos eu tinha em minhas mãos minha xícara de chocolate quente.

Depois de uns vinte minutos o rapaz me chamou para conhecer o apartamento.  Eu já havia decidido que ficaria por lá.  Depois de estar aquecido voltar para aquele tempo implacável lá de fora?  Sem chance!  Me levantei da mesa e fui me dirigindo para o interior do salão mas vi que o cara estava caminhando em direção oposta, indo para a porta de saída.  Não entendi nada mas voltei para junto dele.  Ele me explicou que era lá fora, em outra edificação.  Legal... gostei... depois de estar finalmente aquecido, agora tenho de voltar lá pra fora...

Na verdade (vim a descobrir depois) não se tratava exatamente de um hotel mas eu ainda não tinha conhecimento dessa particularidade.  E convenhamos, mesmo que soubesse não havia opção.  Ou era aquilo ou a chuva e o vento gelado lá de fora.  Existe um ditado que diz: “o que não tem solução, solucionado está”.  Localizados fisicamente ao lado do restaurante existiam dois galpões com oito ou dez quartos cada.  Entramos no primeiro galpão e depois de percorrer todo o corredor ele abriu a última porta e disse que o apartamento era aquele (ou aquilo...).  Alguém já ouviu falar na visão do inferno?  Não sei como seriam os quartos por lá, mas provavelmente não seriam assim...
De imediato compreendi a indecisão do cara em me dizer se havia ou não vaga para mim.  Ele deve ter pensado: "esse Mauricinho chega nessa roupa de astronauta, numa BMW, nunca vai conseguir ficar num lugar assim..."  O quarto tinha três camas-beliche.  Os colchões não tinham lençóis nem os travesseiros tinham fronhas.  Numa delas não existia nem mesmo a forração natural dos colchões.  Era aquele bloco de espuma aparente colocado sobre a cama.  Os travesseiros eram inacreditavelmente encardidos e as paredes do quarto eram grossas de tanta sujeira acumulada.  Não havia TV, apenas as ferragens do suporte e o banheiro acompanhava fielmente a mesma "linha arquitetônica" do quarto.  Enquanto eu olhava para o quarto o cara olhava para mim observando minha reação.  Percebi que uma das camas tinha um espécie de tecido pretendendo ser confundido com um lençol e sobre ele uma toalha dobrada.  Vi que havia um aparelho de calefação a gás e que já estava aceso.  Perguntei se estava no máximo e ele foi até lá e regulou o negócio.  Lembrei-me do mau tempo que fazia lá fora e imediatamente disse a ele que iria ficar com o apartamento.  Pelo menos ali eu estaria abrigado...

Fui até a moto e retirei só a bagagem necessária para passar aquela período até o dia seguinte.  Já havia decidido que não iria encarar o chuveiro daquele banheiro.  Já tinha tomado dois banhos naquele dia: um banho no aconchegante banheiro do hotel de El Calafate, e outro banho na chuva que peguei...
Depois de deixar minhas coisas no apartamento percebi que a única ocupação que teria por ali seria a TV do restaurante.  Mas eu estava um tanto fatigado pelo castigo daquele curto porém atribulado percurso.  Olhei para a cama coberta pelo tecido colocado sobre a espuma do colchão e não tive como evitar um pensamento de comparação com a king size de lençóis bem branquinhos que havia deixado para trás naquela manhã.  Mas, “a necessidade faz o sapo pular” e eu pensei comigo mesmo enquanto olhava em volta de mim: “é Bruno... é o que tem pra hoje...”.
Peguei a surrada toalha que havia sido deixada aos pés da cama e a coloquei sobre o “travesseiro” a fim de evitar qualquer contato direto com aquele objeto.  Deitei assim mesmo como estava, sem retirar nenhuma peça de minha indumentária a não ser as botas e descansei por longas horas.

Mais tarde voltei ao restaurante para comer alguma coisa.  A chuva permanecia intensa, sem nenhuma mudança.  Haviam vários carros parados no estacionamento em frente.  Era difícil dizer, mas já devia ser final de tarde ou início da noite pois as pessoas faziam refeições o que me sugeriu ser hora do jantar.  Como já disse antes, há mais de um ano que não uso relógio e tinha deixado meu celular no apartamento, mas provavelmente deveriam ser umas sete horas da noite ou algo muito perto disso.  Todas aquelas pessoas ali, fazendo refeições, não era simplesmente uma coincidência.  Certamente era hora do jantar.  Pedi meu jantar e me foi colocado um prato de uma espécie de ensopado de frango com pele e tudo e mais um monte de outras coisas, umas submersas e outras boiando.  Acho que eram vegetais, sei lá.  Olhei em volta e o fato de estarem todas aquelas pessoas ali comendo serviram para minha cabeça como uma espécie de credencial do estabelecimento.  Criei coragem e mandei tudo pra dentro.

Minha moto permanecia lá na chuva, no mesmo lugar onde a havia deixado quando parei.  Não retirei quase nada da moto porque além de não ser necessário para minha estada, também me evitaria passar mais tempo debaixo de chuva desamarrando tudo que estava sobre ela.  Perguntei ao rapaz se ela poderia ficar ali mesmo, se não havia risco de mexerem em nada.  Ele disse que jamais houve reclamação de cliente mas se eu quisesse poderia botar a moto sobre uma espécie de passarela da calçada ao lado que vai para os dois galpões.  Essa passarela nada mais é do que uma estreita calçada que interliga a calçada do restaurante às portas dos galpões.  Forma uma espécie de “Y” onde na extremidade singular fica a calçada do restaurante e nas outras duas a porta de cada edificação.  O resto do terreno me pareceu que um dia já foi um jardim, mas naquele momento era apenas de terra simples.  E àquela altura já tinha virado um lamaçal pastoso.  No centro desse “Y” havia além dessa lama toda um grande arbusto que escondia totalmente a passagem para o segundo galpão.  Mas quem estivesse hospedado por lá quando fosse sair do restaurante já iria naturalmente optar por seguir pelo caminho da esquerda na bifurcação desse “Y”.  Havia entretanto uma interligação, também de cimento, que unia as duas pontas, conectando as portas dos dois galpões e fechando a parte superior do “Y”.  Achei que ali seria o local ideal para deixar a moto pois como havia acesso direto e exclusivo para cada porta, não impediria o trânsito das pessoas para nenhum dos dois galpões.  Fiz isso.  Voltei até a moto, subi na calçada e abri o descanso lateral.  Mas a largura da passarela era insuficiente para dar apoio aos pneus e ao descanso da moto ao mesmo tempo.  Era muito estreita.  Não poderia apoiar o descanso naquela lama pois não suportaria o peso da moto e afundaria direto.  Além do fato de que a lama estava em um nível de cerca de 20cm mais baixo que a passarela.  E mesmo que o terreno fosse firme a moto certamente tombaria porque iria ficar inclinada demais.  Buscando uma alternativa, vi que o piso do corredor formado entre os dois galpões não era de lama, era de rípio.  Manobrei a moto um pouco e deixei os pneus sobre o rípio e o descaso sobre o cimento da passarela.  Como a chuva não dava trégua, assim que foi possível tranquei o guidom e desci da moto.

A noite foi tranquila apesar de tudo.  É verdade que não pude me mexer muito pois queria evitar que a toalha saísse de cima do “travesseiro” durante meu sono.  Mas confesso que foi bem melhor do que imaginei a princípio.  Duro mesmo foi a mágica que tive de fazer para usar o vaso sanitário na manhã seguinte.  Dispensa comentários...

objeto para ser usado como travesseiro

Conflito de Identidade

A chuva diminuiu bastante a sua força, mas permaneceu durante toda a noite.  O dia seguinte já não era mais futuro, estava ali, se iniciando.  Era presente.  Verifiquei que tudo estava como deixei na véspera, e era hora então de seguir meu caminho e tirar o atraso.

Na verdade essa ideia de atraso merece uma breve explicação: eu não tinha nenhuma data fixa antes de 4 de janeiro.  Somente neste dia precisaria estar em Urubici para o lançamento do evento do Bicho Véio, moto clube gaúcho do qual sou o embaixador no Rio de Janeiro.  Ainda era dia 19 de dezembro e eu estava relativamente perto, a cerca de 4200km de Foz do Iguaçu.  Já tinha entretanto decidido que a viagem tinha acabado, agora eu estava apenas voltando.  Aquelas várias opções que povoaram a minha cabeça, de voltar pelo Chile, Carretera Austral, compra de pneus em Osorno ou Santiago, Bariloche, natal com os amigos argentinos Flor e Facu em Neuquén etc. já tinham sido todas descartadas por mim.  Eu agora queria era voltar.  Tinha dezesseis dias disponíveis para chegar em Urubici.  Dava de sobra e com muita folga.  Talvez a pouca produtividade do dia anterior tenha brotado em mim a sensação de estar atrasado.  Mas na verdade havia outro estranho motivo (certamente o principal) que me empurrava de volta ao Brasil.

Na minha programação original feita ainda no Brasil, eu iria passar o natal em Buenos Aires e a virada do ano em Montevidéu.  Mas, tratando-se da pessoa que sou e como não podia deixar de ser, fui mudando essa ideia inúmeras vezes durante os tantos meses de viagem até ali.  Mesmo afastado há tanto tempo eu me comunicava com meus amigos quase diariamente através do Facebook.  Já havia recebido do Sampaio o convite para passar o natal com sua família em Foz do Iguaçu e do Junior para estar com eles em Cascavel na chegada de 2013.  Isso também recorrentemente vinha à minha cabeça.  Mas o que me fez decidir, "bater o martelo" de que deveria retornar foi uma situação nova para mim.  Um estranho motivo.  O fato de estar há quatro meses longe de casa não era problema para mim.  Mas o fato de estar há tanto tempo sem pronunciar meu próprio idioma foi (sem que eu percebesse) bagunçando minha identidade.  Escrever o português não substitui falar o português.  Eu conversava a todo instante com pessoas no Brasil, mas sempre por meio do teclado do telefone ou do computador.  Todos os sons que saíam da minha boca eram em espanhol.  Viajar sozinho pela América do Sul tem dessas coisas.  Você escreve, lê, pensa na sua língua original.  Mas quando fala não há brasileiros para ouvir então tem de ser em espanhol.  Isso foi causando uma considerável desordem na minha cabeça que eu cheguei ao ponto de por algumas vezes me pegar pensando em espanhol.  A todo instante, quando "falava" comigo mesmo, só adiante me dava conta de que estava falando em espanhol.  Tenho o hábito de fazer minhas orações diárias em cima da moto e por mais de uma vez iniciei a reza pronunciando mentalmente: “Padre nuestro...”  Na tormenta entre El Calafate e La Esperanza passei por uma grande pedra na beira da estrada na qual estava pintado em grandes letras brancas o nome “Jesus”.  Lembro que mentalmente li “Ressus” (com a pronúncia espanhola).
Pode parecer besteira mas isso foi tomando em mim uma dimensão tal que me senti como se estivesse perdendo minha própria referência.  Essas coisas aconteciam independentes de minha vontade.  Era como se, em decorrência do meu afastamento, o tempo estivesse roubando minha identidade e dissipando minha personalidade.  Era hora de voltar!

Esse foi o estranho e verdadeiro motivo da minha decisão e do meu súbito regresso.

Mas voltando à minha saída do “hotel” em La Esperanza, eu estava ali feliz por ter visto que tudo estava conforme havia deixado na véspera: moto e bagagem.  Voltei para meu quarto e catei minhas coisas, as pus na moto e depois de vestir a capa de chuva dei um esquisito adeus para aquele alojamento.  Foi uma mescla de alívio por estar saindo dali, tipo “até nunca mais”, com um emocionado “muito obrigado por existir e ter me abrigado daquela tempo terrível que fazia lá fora".  Eu sei, um tanto paradoxal, mas aquele pernoite me fez rever meus conceitos e valores...

Já do lado de fora a chuva agora era tipo padrão.  Já sem aqueles efeitos “hollywoodianos” da véspera.  Na moto bagagens acondicionadas.  Em mim capa de chuva, luvas, capacete, tudo ok.  Liguei a moto e fui saindo mas vi que pela manobrada de ontem a moto tinha ficado meio em diagonal à calçada/passarela.  Sair de ré estava difícil não só pela posição dela mas também porque como a moto não tem marcha a ré seria preciso meter o pé naquela lama com firmeza suficiente para empurrar a moto para trás.  Tarefa praticamente impossível de ser executada pois a lama estava ainda mais escorregadia pela incessante chuva que caía desde a véspera.  Ainda havia também a diferença de altura entre o piso da passarela e o piso enlameado ao lado dela (onde apoiaria meu pé).  Vi que a saída era engatar a primeira marcha e contornar aquela espécie de canteiro central seguindo todo o “Y”.  No centro desse canteiro havia aquele grande arbusto que me impedia um pouco de visualizar o piso adiante na segunda parte do “Y”, mas não havia outro jeito.  Ou era isso, ou pé na lama.  Segui bem lentamente com as pontas dos pés viradas para dentro.  Estava complicado achar lugar para pousar os pés e dar equilíbrio à moto naquela estreita passarela.  Cheguei o mais perto que me foi possível da parede do segundo galpão para tentar numa única manobra vencer aquele ângulo agudo e fazer a curva para entrar na segunda perna do “Y”.  Eu estava naquela espécie de união das duas extremidades que fechava a parte superior do “Y”.
Já na primeira tentativa, depois de ter iniciado meu ingresso na segunda perna, a roda dianteira escorregou e desceu para a parte externa, parando apoiada na terra vinte centímetros abaixo.  Era tudo o que eu não queria que acontecesse.  Tentei puxar de volta pelo guidom e nada.  Tentei baixar o descanso mas como a roda dianteira estava bem abaixo não havia altura suficiente para o curso do descanso.  Ou seja não tinha como acionar o descanso e apoiar a moto para que eu pudesse descer dela e, “no braço”, tentar subir a roda de volta.  Não tinha como descer para a terra porque certamente iria atolar na lama.  E ainda havia um outro arbusto que me impediria de ir adiante caso não atolasse.  Vi que mais uma vez não sairia sem ajuda da situação em que me encontrava.  Era preciso ficar em cima da moto para que ela não tombasse.  Eu já sabia que seria impossível conseguir ergue-la sozinho.

Estava na chuva, sentado na moto, atrás de um arbusto que me isolava da visão da rua, sem poder sair de cima dela porque não era possível achar apoio.  O arbusto me atrapalhava mas tentei girar o corpo para avistar o posto e fazer sinal para alguém mas minha coluna ainda convalescente não permitiu nenhum movimento.  Pensei em buzinar mas minha civilidade me fez lembrar que eram cerca de seis horas da manhã e com certeza haviam outras pessoas dormindo.  A ajuda que estava buscando poderia se transformar em problemas...

Fiquei ali parado sob chuva nem sei por quanto tempo, acho que uns vinte minutos.  De repente sai de uma porta lá da casa do restaurante uma mulher com uma toalha nas costas e se encaminha para um anexo que me pareceu ser um banheiro.  Chamei e pedi que ela buscasse um homem que pudesse me ajudar a sair dali.  Ela olhou e ignorou completamente minha súplica, desaparecendo por trás da porta do banheiro.  Mais outros vinte minutos e ela reaparece de banho tomado e olha para mim.  Voltei a pedir o auxílio dela, disse que sem ajuda não conseguiria sair dali, que ela por favor buscasse um homem para me ajudar a erguer a roda da moto.  Ela simplesmente respondeu que “no hay ningún hombre”.  E desapareceu definitivamente.
Aí está uma verdadeira dama... (juro que foi o que pensei dela...).

Permaneci
muitos e longos minutos ali sentado sobre a moto até que saiu do “meu” galpão um cara com cara de sono e uma garrafa térmica na mão.  Pedi a ele se seria possível me ajudar e expliquei a situação.  Ele foi até a frente da moto e acertou as coisas deixando a roda dianteira sobre o piso de cimento.  Agradeci e fui saindo, cuidando para a roda dianteira não voltar a descer para a parte externa da passarela.  Tinha de ter cuidado também com a roda traseira para não escorregar para a parte interna.  Depois de vencida essa curva a coisa ficou fácil e fui seguindo até chegar na calçada e finalmente descer para o asfalto.

Paguei minha conta e finalmente segui meu caminho de saída da Patagônia.




Escapando das Cinzas

Os ventos sempre lá, presentes, me fazendo “companhia”.  Na verdade esse é um ponto interessante para quem costuma viajar sozinho: a companhia (ou a falta dela).  O fato de se viajar sozinho pode à primeira vista parecer uma condição desfavorável.  Mas nem sempre é.  É verdade que estar em meio a amigos é sempre muito positivo e agradável, além de inegavelmente mais seguro.  Mas existem situações que estar uno, singular, não é tão ruim assim.  Muito pelo contrário.  Viajando sozinho você é “dono do destino”.  Você decide onde vai parar; onde vai abastecer (e o tempo dessa parada); escolhe o hotel sem constrangimentos de ser acanhado demais para uns companheiros mais “exigentes” ou por outro lado caro demais para outros mais modestos; muda os planos no meio do trajeto sem necessitar de “reuniões” e votações; decide sozinho a velocidade ideal para aquele momento ou trecho e a altera quando quiser sem “condenações”; resolve do nada sem nenhuma culpa interromper a marcha daquele dia simplesmente porque resolveu parar por ali mesmo; ou o oposto, pode estar tão bem naquele dia que resolve “esticar” mais um pouco até mais adiante e pernoitar algumas centenas de quilômetros à frente do que havia previsto quando saiu na manhã daquele dia.  Isso sem contar que numa viagem longa como esta, de mais de quatro meses, o que no início pode ser uma afetuosa e fraterna amizade pode se transformar numa enorme antipatia pelo intenso e saturante convívio nos moldes de um Big Brother.

Por isso às vezes prefiro estar “apenas” na companhia de meus próprios pensamentos.  Eu sempre me considerei uma boa companhia para mim mesmo, sempre gostei muito da minha própria companhia.  O meu conceito de solidão passa muito longe de ter ou não pessoas à minha volta.  Solidão para mim não tem nada a ver com estar ou não acompanhado.  Mas isso é uma outra história...

O vento estava lá, sempre viajando na minha garupa.  Ora me "puxando" contra, ora me ajudando a ir adiante.  Mas depois que passei da entrada de Rio Gallegos ele se pôs (ou melhor: se opôs) lateralmente e “congelou” nesse ângulo de abordagem por vários dias.  Na náutica diríamos que seria um vento de través.

O tempo foi melhorando e a chuva foi ficando no meu retrovisor.  Depois de vários quilômetros sem cair uma gota sequer parei num posto para o abastecimento, retirei a capa de chuva e desliguei a roupa térmica.  Finalmente o sol apareceu.  A temperatura ainda era baixa para meus moldes cariocas, mas já estava longe daquele verdadeiro freezer de dias atrás.  O termômetro da moto já indicava dois dígitos, sempre acima dos dez graus Celsius.  Isso para mim já era um alívio de extremo conforto.

Abastecidos o corpo e a moto, voltei para a estrada.  O céu estava claro e com sol brilhante apesar da temperatura que ainda era baixa.  O danado do vento ali na minha lateral.  Sempre muito forte, indescritível, difícil de conseguir traduzir em palavras, só mesmo estando lá.  E de moto!

Se pelo menos ele se mantivesse o tempo todo uniforme, com a mesma força e intensidade, a coisa seria mais fácil.  Para conviver com essa condição, era preciso ficar o tempo todo pendido para o lado de onde ele soprava (barlavento) a fim de compensar o seu efeito no equilíbrio do conjunto moto, bagagem e piloto.  Mas o pior é que o “cara” soprava de forma inconstante, com variações na intensidade, desequilibrando tudo a todo instante.  Imagine alguém te empurrando de lado.  Naturalmente você faria uma força contrária para não cair, igualando e contrabalançando a situação.  Mas se essa pessoa repentinamente parasse de te empurrar, sua própria força contrária te levaria ao desequilíbrio pela súbita ausência da força oposta.  Isso acontecia o tempo todo e a mais de 100 km/h!  E por vários dias!  Ainda tinha uma outra coisa muito, mas muito desagradável mesmo:  quando vinha um caminhão ou ônibus em sentido contrário, o deslocamento de ar causava uma forte pancada no capacete seguido de um longo e duradouro chacoalhar que me fazia pensar que minha cabeça ficava por alguns segundos igual aos braços daqueles bonecos de vento dos postos de gasolina.
Esse foi mais um ponto “delicioso” da viagem.

Com a aproximação da tarde a força dos ventos aumentou muito (como habitual), e resolvi que era hora de procurar pouso.  Eu não tinha o compromisso de ter de seguir rodando até o fim do dia.  Eu nem sabia ao certo ainda para onde ia!  Na minha cabeça eu já havia decidido voltar ao Brasil, mas sempre tem uma parte de mim que fica o tempo todo me fazendo propostas e sugerindo outras alternativas.  Como nada que eu decido numa estrada é definitivo, aquela ideia aparentemente já descartada de seguir em direção a San Carlos de Bariloche para passar uns dois dia por lá, e depois passar o Natal com amigos que moram em Neuquén, volta e meia repovoava minha mente.   Mas nada ainda estava realmente decidido.  Eu me conhecia há 55 anos e sabia muito bem que a qualquer momento eu poderia “apontar” a moto para qualquer outra direção...

Vi uma placa que indicava um hotel na pequenina cidade de Fitz Roy.  Àquela altura do dia o infeliz do vento já se divertia comigo.  Eu estava vendo que a qualquer hora ele poderia me lançar para pista oposta à minha, e como Murphy não falha, seria no momento exato em que viesse um veículo em sentido contrário.  Meus olhos não desgrudaram daquela placa de “Hotel”.  Meio a contragosto consegui voltar a olhar para a pista e busquei um bom local para fazer o retorno.  Porém diminuir a velocidade é um dos maiores problemas sob esse enorme vento lateral.  Para fazer a volta é preciso parar.  E isso é quase uma espécie de suicídio do equilíbrio, praticamente tombo certo.  Mas sem parar não dá para fazer a volta.   Fui diminuindo e vi um posto de gasolina numa curva para direita que se aproximava.  O posto ficava à esquerda, do lado da pista oposto ao que eu estava.  Aproveitei a curva que me livrou momentaneamente da pressão lateral e saí, “perdendo” a curva em direção ao posto.  Me senti num Globo da Morte, mas deu certo.  Estava passando sobre o piso do posto.  Continuei completando a volta que fazia e regressei pela rua interna em direção à placa indicativa do hotel.  Cheguei na placa mas não vi o hotel, olhei para um lado e para o outro e nada.  Perguntei a um menino que passava e fui informado que estava em reforma, estava “cerrado”.  Talvez em virtude da fisionomia que devo ter feito depois de saber que o hotel estava fechado, o garoto me disse que agora no posto da curva tinha um hotel.  Voltei ao posto e me acomodei como o primeiro hóspede de um recém inaugurado hotel.

Depois de um bom e relaxante banho quente, fui até a lanchonete do posto a fim de comer alguma coisa e comprar água e biscoitos para a noite.  Logo que cheguei ao posto vi um carro sendo “levado” pelo vento enquanto era abastecido.  Depois do corre-corre entre o frentista e o dono do carro que saiu esbaforido da lanchonete, vi o frentista alertando ao motorista que ele não faça mais isso, que sempre que parar ele use o freio de mão.  Não pude evitar de rir.

A noite foi longa porém tranquila.  Minhas costas é que ainda me incomodavam bastante e talvez por conta disso preferi ficar ali deitado desde aquele final de tarde até a noite quando finalmente chegou a hora de dormir.  Algumas vezes aquela tranquilidade do hotel era interrompida pelo ruído de rajadas de vento inacreditáveis, naturalmente seguidas de uma espiada na janela.  Tinha de conferir que a moto ainda se mantinha de pé apesar do vendaval que acontecia lá fora.  Mas no dia seguinte o sol brilhava mais uma vez e o vento havia voltado ao seu normal, era apenas fortíssimo...

Segui meu caminho ainda considerando a possibilidade de seguir para noroeste, rumo a região de BarilocheFitz Roy fica às margens da RN 3, que liga o “Fin del Mundo” à Capital Federal Buenos Aires.  Deixei o hotel e cerca de 50km depois a rodovia alcança o litoral e se mantém nessa condição litorânea, costeira (ou costaneira como eles chamam) por cerca de mais 110km até a cidade de Comodoro Rivadavia, local onde pretendia ter chegado e pernoitado na véspera.  Comodoro Rivadavia está na província de Chubut, já fora da província de Santa Cruz.

Na Patagônia Argentina existem certas facilidades visando o desenvolvimento da região, que favorecem também aos turistas como por exemplo combustível subsidiado e mais barato.  Mas o controle também é mais rigoroso tanto aquele fitossanitário que já mencionei anteriormente como, especificamente na província de Santa Cruz, há uma atenção muito grande por parte das autoridades acerca do contrabando.  Mesmo após fazer os trâmites aduaneiros naquele complexo aduaneiro grande e confuso (Paso de Integración Austral), há depois dois outros controles no meio da estrada, com barreiras atravessadas na pista, para que então no último entreguemos um papel devidamente carimbado pelos funcionários dos controles anteriores, o que comprova ter passado por todos.  Entretanto, mesmo depois de tantas verificações, centenas de quilômetros adiante, fui parado num posto policial tendo que estacionar e deixar a moto para lá dentro apresentar toda a documentação, minha e da moto.

Seguia pelo trecho litorâneo da Ruta Nacional 3 apreciando a movimentação daquele mar eriçado, com ondas muito potentes e até mesmo assustadoras.  Entre Fitz Roy e Rivadavia está a pequena Caleta Olivia.  Também às margens do Atlântico Patagônico, mas somente na entrada de Comodoro Rivadavia foi que pude testemunhar um espetáculo da natureza que jamais havia visto: as enormes ondas quebravam suas cristas em direção ao cais mas o vento em sentido contrário praticamente impedia que a água alcançasse a pista.  É verdade que havia muita água na pista, passei em longas poças que cobriam totalmente o asfalto, mas era nítido que aquilo era apenas uma “rebarba” daquela fúria aquática que acontecia além do cais.  As ondas vinham em direção à terra mas o vento contrário carregava a crista no sentido oposto formando uma espécie de “S”.  Não pude deixar de lembrar dos "quatro elementos da natureza": água, fogo, terra e ar.  Havia ali uma disputa entre dois deles: a água (o mar) e o ar (o vento).  Muito louco o negócio...

Ali em Comodoro Rivadavia eu já deveria ir me direcionando para Bariloche se quisesse realmente ficar uns dias por lá para depois ir para Neuquén passar o Natal com amigos.  Mas a dor nas costas, a sensação estranha do meu próprio idioma "se evaporando" de mim, e sei lá mais o quê!  O fato é que eu estava ali, sem nenhum motivo concreto, novamente decidindo que iria seguir direto de volta ao Brasil.  Rever os amigos de Neuquén ficaria para uma próxima vez.  Segui então meu caminho natural de volta.  Interessante é que alguns dias depois vi pelo noticiário que exatamente na data prevista para minha chegada em Neuquén o vulcão Copahue que fica na fronteira entre Argentina e Chile, e a apenas pouco mais de trezentos quilômetros de Neuquén, teve um aumento de suas atividades obrigando a Agência Nacional de Emergência do Chile a decretar “Alerta Vermelho”, que foi também acompanhado pela Argentina, o que permitiu aumentar o monitoramento do desempenho do vulcão e dispor de recursos para verificar quaisquer problemas causados pela erupção.
O vulcão começou a cuspir uma nuvem de cinzas incomum e as emanações produzidas estavam voltadas para o lado argentino.  Mais uma vez agradeci ao meu anjo da guarda por falar direto com minha mente sem que eu percebesse...

Naquele dia novamente segui até onde fui capaz de ir.  A noite ser como dia engana a mente mas não o corpo.  Você pensa que ainda é cedo mas nem sempre acerta.  Parei por volta das cinco da tarde numa localidade chamada de San Antonio Oeste.  Conjugado a um posto YPF havia um hotel.  Parei a moto e fui até a recepcionista ver se havia habitacion libre e o preço.  Tomei um susto: trezentos Pesos!  Argumentei, barganhei, tentei, mas tudo o que consegui foi uma redução de míseros 20 Pesos.  Desisti e fui em busca de outro hotel.  O frentista do posto me disse para pegar uma via auxiliar e ir a Las Grutas onde havia vários hotéis, a pouco mais de 7 km de lá (sentido oposto).  Mas logo que cheguei vi que seriam mais caros, o lugar era um chique balneário.  Voltei pela mesma via e no lugar de virar à esquerda e voltar à rodovia onde estava aquele hotel, virei à direita e entrei em San Antonio Oeste.  Fiquei num excelente apartamento com quarto, sala, cozinha e banheiro, dois aparelhos de TV etc. tudo por 120 Pesos.  Menos da metade do outro.  Depois de devidamente instalado, era hora de aplacar a fome.  Atravessei a praça em frente e fiz a “feira” num mercadinho.  Se não fosse a dor nas costas a noite teria sido maravilhosa.

Esse negócio de o corpo atrapalhar os nossos planos é muito chato.  Estou acostumado a “comandar” meu corpo e não o contrário.  Sei que nem sempre é possível mas eu faço tudo o que posso para não ser refém do meu próprio corpo.  Um exemplo disso foi quando parei de fumar.  Eu estava com trinta anos mais ou menos e fumava desde a adolescência.  Certo dia um amigo pneumologista me garantiu que era equivocada a ideia que eu fazia de que “nem adiantaria parar de fumar porque já estava tudo danado mesmo”.  Que seu eu parasse de fumar, em cerca de um ano meu pulmão voltaria a ser como o de um não fumante.  Eu disse a ele: - Então parei agora!  E nunca mais fumei.  Eu devo ser diferente da maioria, sei lá.  Mas o que posso dizer, posso mesmo afirmar, é que no meu caso pessoal eu não sou passageiro do meu corpo, meu espírito não é passageiro do meu corpo; meu corpo sim é o passageiro do meu espírito.  O comando está na minha alma.  Minha existência é meu espírito e não meu corpo.  Na minha vida, no meu íntimo, está muito bem claro quem comanda quem.  Se decidi parar de fumar não ia ser o corpo quem iria me impedir.  É verdade que passei anos sonhando que estava fumando, acordando assustado achando que havia fraquejado, mas de fato isso nunca aconteceu, nunca mais botei um cigarro na boca.

Mas aquela situação era diferente.  Eu não tinha o comando total.  Minha mente dizia para fazer mas o corpo reclamava e não correspondia.  Isso me incomodava até mais que a própria dor.  Mesmo com toda essa consciência interior de que minha existência está no meu espírito e não no meu corpo, ali eu não podia fazer nada, naquele caso tinha apenas de me conformar e aceitar...






Logo que der posto mais um pouco.......