Agosto em Bonito - MS

Depois que voltamos do nordeste em janeiro, deixamos meio que combinado de irmos a Bonito. A data ainda não estava marcada mas pelo tipo de atrativos locais sabíamos que deveria ser num mês quente. Encarar passeio de bote, mergulhos, flutuações e banhos de rio no frio só mesmo pra quem é masoquista. Só poderíamos ir depois de pelo menos uns dois meses de intervalo pois eu sou o único aposentado e nesse nosso grupo alguém tem que pelo menos fingir que trabalha.
Passados fevereiro e março estaria chegando a hora de botarmos nosso plano em ação. Entretanto em abril fui a Porto Seguro com meu filho Bruninho, Piggy e Duck e dois meses depois, em junho, fomos eu, My Boy, Diorlando e Cometa 09 a São Joaquim, pela Serra do Rio do Rastro em Santa Catarina e depois ainda demos uma esticada até o Rio Grande do Sul. Lá voltamos a falar no assunto mas mesmo assim ainda não havíamos chegado a marcar a data.
Talvez em virtude de turbulências paralelas que duraram cerca de trinta dias, a ida a Bonito foi combinada por My Boy durante essa fase. Eu já havia marcado a visita a um evento motociclístico em Teresópolis, inclusive reservado hotel e depositado o valor para minha estada naquela cidade. Senti vontade de ir a Bonito também, mas eles sairiam no mesmo sábado em que eu subiria a serra para Teresópolis. Ainda tentei argumentar de que o momento não era próprio, estávamos no inverno e lá faz muito frio nessa época, mas não houve jeito. A decisão fora tomada durante aquela turbulência (talvez até por causa dela) e agora já era tarde para alterar. Paciência...
O dia chegou e cada um foi para o seu destino. À noite fiz contato por telefone com My Boy e soube que já estavam em Passos (MG) curtindo um evento local. Eles tinham a ideia de passar o domingo na cidade e sair de lá na segunda-feira cedo. Fiquei com “água na boca” de fazer essa viagem até Bonito. Domingo no café da manhã no hotel em Teresópolis, novo contato via telefone e eles me disseram que iriam sair de Passos depois do almoço, descartando aquela ideia de dormir uma segunda noite por lá. Queriam ganhar tempo. A distância do Rio de Janeiro até a cidade alvo do Mato Grosso do Sul é considerável, são cerca de 1900 km. Eles haviam rodado pouco mais de 600 km e apesar de terem saído às sete horas da manhã só chegaram em Passos bem depois das nove da noite. Queriam então transferir o tempo que usariam para estar a toa para tempo dedicado ao trajeto rumo a Bonito. Eu também faria isso se só tivesse nove dias para todo o programa.

Momento da decisão

Eram quase nove horas quando, enquanto tomava café da manhã no hotel em Teresópolis, decidi realmente que iria a Bonito. Entretanto eu estava com meu filho que voltaria às aulas no dia seguinte, teria que levá-lo para casa antes de ir. Desci para o Rio, pela serra, passando pela Rio-Petrópolis, Linha Vermelha, toda a Linha Amarela e fui até a Barra da Tijuca deixar o Bruninho na casa dele. Saí da Barra pouco antes do meio dia. Peguei toda a Linha Amarela de volta, novamente a Linha Vermelha e finalmente entrei na Via Dutra rumo a São Paulo, caminho para o Mato Grosso do Sul.
Minha ideia era seguir até São Paulo e de lá seguir pela rodovia Castelo Branco (SP 280) até quase chegar em Itatinga onde viraria à direita na SP 209 para Botucatu e lá passaria para a rodovia Marechal Rondon. A meta era passar de São Paulo ainda no domingo pois pegar aquela marginal do Tietê num dia de semana é o mesmo que pedir para morrer.
Ainda no café lá em Teresópolis eu perguntei a Vilma proprietária da Warrior o que ela achava desse meu trajeto. Ela disse que se fosse iria por Campinas. Alertou de que mesmo tendo de fazer várias de trocas de rodovias até chegar na Rondon ela achava bem melhor que ir até São Paulo para depois subir a Castelo Branco. Isso me deixou cheio de dúvidas, mas eu tinha até a parada de São José dos Campos para decidir.



Costumo sempre que vou para a direção sul seguir pela Dutra só até Taubaté. Meu caminho padrão é entrar na rodovia Carvalho Pinto (SP 070) e se for para os lados de Campinas seguir até Jacareí onde está a entrada da rodovia D. Pedro I (SP 065), ou continuar pela Carvalho Pinto direto até a Ayrton Senna para entrar na Marginal do Tietê se a intenção for seguir para a capital paulista ou ir ainda mais ao sul. Eu tinha consciência de que depois que eu deixasse a Dutra só haveria o posto do Frango Assado em São José dos Campos antes da entrada da D. Pedro. Se eu pretendia pedir informações para facilitar minha decisão teria de ser ainda na Via Dutra. Iniciei então uma tentativa de obter ajuda de caminhoneiros usando o rádio CB. Todos os que eu estabeleci contato me diziam para ir pela rodovia Castelo Branco direto e depois pegar a rodovia Raposo Tavares (SP 270) até a divisa com o Mato Grosso do Sul onde ela voltaria a ser a rodovia federal BR 267. Entretanto eu já tinha verificado para um amigo que pretendia ir a Bonito e sabia que assim que a BR 267 entrasse no MS encontraria mais de 250 km desconfortáveis, de pista ruim com buracos e ondulações além daquelas malditas valas formadas pelos caminhões pesados. Mesmo que eu atendesse às orientações dos caminhoneiros e seguisse pela Castelo Branco eu não pretendia ir direto até a divisa, eu sairia na SP 209 em direção a Botucatu e seguiria pela rodovia Marechal Rondon. A minha dúvida era somente de como seria melhor para se chegar na Marechal Rondon, se por São Paulo (via Castelo Branco) ou se por Campinas (via D. Pedro I).
Os caminhoneiros me recomendavam ir pela Castelo Branco, mas a Vilma, que passa a vida viajando com o ônibus da Warrior havia me dito para ir por Campinas. Acho que nunca fiquei tão indeciso numa escolha de roteiro.
Quando parei para o meu costumeiro abastecimento no posto do Graal de Itatiaia perguntei aos frentistas mas não obtive nenhuma resposta que me desse segurança. Um deles entretanto foi perguntar a um caminhoneiro que também disse para ir até São Paulo e lá pegar a Castelo Branco. Todos estavam me direcionando para o caminho que eu havia planejado, mas o conselho da Vilma não me saía da cabeça. Em Aparecida parei no posto Arco Íris para tentar resolver esse impasse. No último pedágio me recomendaram pedir informações por lá. A funcionária do caixa do posto me disse que todos os viajantes que passavam por ali em direção a Campo Grande iam por Campinas. E agora? Mais dúvidas... mais conversas com caminhoneiros pelo rádio CB e nada decidido. O que eu havia percebido é que os caminhoneiros preferiam a Castelo Branco, mas os demais não. Minha decisão não poderia acontecer depois de Jacareí onde está a saída da Carvalho Pinto para a D. Pedro. Lá eu teria de escolher entre seguir direto ou virar para Campinas.
Chegando no abastecimento do Frango Assado em São José dos Campos como de costume nenhum dos frentistas daquele posto soube dar qualquer informação. Estava abastecendo minha moto quando atrás de mim parou uma BMW LT 1200 cujo piloto parecia ser um viajante como eu. Ele foi a pessoa que como por encanto esclareceu toda a divergência entre as recomendações que recebi. Me fez decidir ir por Campinas quando, com forte sotaque paulistano, disse que o trecho da Castelo Branco de São Paulo até um pouco além da entrada para Botucatu era muito perigoso para nós motociclistas pois é repleto de caminhões. A distância a ser percorrida nas duas opções era praticamente a mesma e as pistas do roteiro por Campinas eram todas lisas e novas. Finalmente me acalmei e achei a segurança que buscava, enfim uma indicação que me convenceu.
E a Vilma estava certa...



Entrei na Rodovia D. Pedro I, velha conhecida minha, e fui curtindo aquela bela estrada. Inicialmente tinha a intenção de dormir pela região de Campinas, um pouco depois das entradas principais da cidade visando não enfrentar muito engarrafamento no dia seguinte quando acordasse pois seria segunda-feira e certamente o fluxo de veículos estaria bem maior que naquele fim de tarde de domingo. Campinas concentra, centraliza mesmo, uma boa quantidade das estradas paulistas. Existe até uma frase que diz que "Campinas é o lugar onde todos os caminhos se encontram".
Quando passei por lá ainda estava dia claro, devia ser algo em torno de cinco horas da tarde então resolvi continuar um pouco mais.



No final da D. Pedro I peguei a Via Anhangüera (SP 330) imaginando dormir por Americana ou talvez Limeira. Sem perceber fui seguindo direto até chegar na rodovia Washington Luís (SP 310) onde entrei em direção a Rio Claro.
Bom, quem sabe durmo por lá?
Deixei Rio Claro também para trás. Segui até o ponto de entrada para a excepcional SP 225 que em cerca de 150 km finalmente me faria a ligação com a Marechal Rondon (SP 300). Esse entroncamento acontece em Bauru, cidade onde a SP 225 e a SP 300 se cruzam. Fui seguindo direto pela SP 225 que de Itirapina até Jaú chama-se Rodovia Engenheiro Paulo Nilo Romano, e de Jaú até Bauru leva o nome de Rodovia Comandante João Ribeiro de Barros. Agora já era noite mas eu estava tão bem disposto, tão alerta e sem nenhum “pingo” de sono ou cansaço que nada me fazia pensar em parar. Passei direto por Itirapina e Brotas. A escuridão noturna já estava realmente presente, eram cerca de dez horas eu acho quando avistei ao longe um posto da Policia Rodoviária. Já estava rodando havia mais de uma hora sem que tivesse passado por algum posto de gasolina. Perguntei ao policial que me recebeu na pista se tinha algum posto por perto, e ele apontou para um luminoso cerca de cem metros adiante. Abastecida a moto, lembrei-me que ainda não tinha comido nada além daquele café da manhã em Teresópolis e de um pão de queijo naquela parada no posto Arco Íris em Aparecida. Resolvi então dar uma esticada até a lanchonete do posto para comer alguma coisa.

Sem sair de perto

Desde que saí naquela manhã essa foi apenas a segunda vez em que me afastei da moto nos abastecimentos. Todas as outras vezes em que parei me limitei a abastecer a moto e quando muito uma “passadinha” no banheiro. Decidi então que deveria dedicar um tempinho também ao abastecimento do meu organismo. Um café expresso, uma esfirra de frango e um pequeno chocolate Talento. Esse foi o saldo dessa refeição. Dali do posto fiz uma ligação para Piggy e contei para ele onde estava e o que estava fazendo. Depois de ser carinhosamente chamado de maluco, louco, doido entre outros termos impublicáveis, algumas amenidades foram também faladas.
Trinta minutos depois saí do posto decidido a dormir em Bauru. Pela agilidade que oferece na entrada e saída, eu queria um motel de beira de estrada e o pessoal do posto havia me dito que só naquela cidade eu encontraria um. Segui então pela SP 225 e deixei Jaú, Itapuí, Pederneiras e Guaianás para trás até que cheguei nos arredores de Bauru. Cerca de 10 km antes havia passado uma placa informando que a SP 300 estava adiante. Imaginei que no momento em que chegasse a saída da 225 para a 300 fosse existir uma placa indicando. Assim como a Carvalho Pinto, a Ayrton Senna, a D. Pedro I, a Anhangüera, a Washington Luís, na verdade quase todas as rodovias estaduais paulistas a SP 225 é uma estrada em excelente estado de conservação, feita daquele asfalto bem escuro, em pista dupla com duas faixas de rolamento cada, sinalização horizontal perfeita com pintura das faixas e refletores do tipo “olho de gato” que parecem estar acesos. Um sonho. A Marechal Rondon é o trecho paulistada de algumas rodovias importantes como a BR 267 e principalmente a BR 262 que corta o Brasil de leste a oeste. Era de se esperar por uma informação que indicasse a rampa de ligação entre essas duas mega estradas. Mas por mais inacreditável que possa parecer isso não existe.
Passei por baixo de uma ponte daquelas que se percebe que é uma grande rodovia que está lá em cima, mas como não havia nenhuma placa indicando fui em frente. Logo a seguir a imponente estrada se transformou numa acanhada pista vicinal, em mão dupla e com o asfalto rachado e cheio de ondulações, daquelas que nós cariocas conhecemos bem. Todavia ainda era a SP 225, por isso resolvi continuar mais um pouco pois considerei a possibilidade de que aquele estado primoroso que a estrada tivera até aquele ponto fosse para atender ao fluxo entre Bauru e a região de Campinas e que logo mais à frente fosse surgir a entrada para a SP 300. Eu não estava maluco, pelo menos não muito já que estava guiando há mais de 14 horas sem parar, mas sabia que realmente não estava maluco e que tinha visto passar um aviso de que a SP 300 se aproximava, não era lógico que não existisse uma placa indicando a chegada dela. Mas apesar de não ser nada lógico era a verdade.
Avistei fortes e piscantes luzes amarelas características de carro de serviço lá adiante no meio da escuridão total. Me aproximei cautelosamente e vi que era uma caminhonete de apoio parada dando socorro a um carro com problemas mecânicos. Perguntei ao motorista pela rodovia Marechal Rondon e, como cheguei a suspeitar, era justamente aquela que passei por baixo. Agora aqui pensando enquanto escrevo, me parece mais do que óbvio que só poderia ser ela, mas naquele momento, sozinho, ou melhor, absolutamente sozinho, naquele breu, não havia espaço para um erro daquela proporção. Se eu entrasse numa rodovia daquele porte e não fosse a correta só Deus sabe onde eu iria achar o próximo retorno e o quanto eu iria, àquelas horas, me embrenhar por caminhos diversos ao que eu pretendia. Foi melhor errar numa pista simples onde pude simplesmente virar o guidom da moto e voltar.
Tudo isso eu considerei naqueles poucos segundos que se passaram entre avistar a ponte, a subida para a pista que estava lá em cima e a decisão de seguir em frente deixando tudo isso para trás. Se tivesse entrado no acesso teria acertado, mas se fosse a rodovia errada...
Entrei na SP 300, rodovia Marechal Rondon. A estrada que me levaria ao centro-oeste brasileiro. Estava entretanto pretendendo pernoitar por ali mesmo, bastava aparecer o primeiro motel na beira da estrada conforme me foi dito que aconteceria.
Atento e em velocidade reduzida fui seguindo pela rodovia. Bauru foi gradativamente ficando para trás e não avistei motel nenhum. Certamente eles deviam estar lá, mas como durante a passagem por aquela cidade a Marechal Rondon a todo instante oferece saídas para pistas laterais usadas para serviço, ficou difícil observar e ainda guiar pelas pistas principais. O fato é que não achei o que queria em Bauru. Continuei então seguindo na direção oeste. No abastecimento seguinte eu perguntei ao frentista que me disse que talvez em Lins eu encontrasse algum hotel na beira da estrada. Lins fica distante cerca de 100 km de Bauru.
Pouco antes da entrada para Avaí há um pedágio e lá aproveitei para confirmar a informação do frentista. Eu não estava com sono tampouco estava cansado, então não haveria nenhum risco adicional aos naturais de uma viagem noturna.
Assim segui até Lins, mas quando fui chegando na área urbana daquela cidade percebi que teria de me afastar muito da estrada entrando demais na cidade. Novamente decidi continuar. Araçatuba fica a mais ou menos 95 km de Lins e é uma cidade com bastante estrutura. Poderia ser lá meu pernoite, quem sabe? E ainda tinha a pequena Promissão que estava a cerca de 20 km dali.
A essa altura a noite já havia ficado para trás e estava entrando pela madrugada. Já passava muito da meia noite. A estrada era só minha, além das luzes do painel da moto eu só avistava o que meu farol iluminava, absolutamente mais nada, uma escuridão muito louca. Nem lua havia no céu. Não tinha mais ninguém usando a estrada eu era o único a cruzar aquelas terras naquela madrugada de domingo para segunda-feira.



Mais uma cobrança de pedágio logo após a entrada para Guaiçara e o funcionário me disse que em Promissão havia um motel logo na entrada da cidade, coisa de menos de 1 km de desvio da pista principal. Pensei então que havia chegado o local do meu pernoite. Na verdade eu acho que eu estava era protelando o momento da minha parada. Eu estava tão alerta e inteiro que não estava mesmo querendo parar. Já estava guiando há mais de 16 horas sem parar mas não sentia nenhum efeito do que se poderia chamar de desgaste natural. As estradas pelas quais havia passado até agora eram tão boas que achei que deveria aproveitar para continuar mesmo madrugada adentro. Eu sabia que quando entrasse no Mato Grosso do Sul a mesma estrada deixaria de ser pedagiada e passaria a ser uma rodovia federal, provavelmente com a manutenção que nós já sabemos como é feita. Além do fato de que passaria a ser de mão dupla. Se eu queria ganhar tempo devia aproveitar meu estado tranquilo e as excelentes condições das rodovias paulistas. Só mesmo naquelas estradas para se aventurar àquelas horas.
Assim que paguei o pedágio saí rapidamente e com a moto ainda em primeira marcha ouvi um forte estalo do lado direito do motor. Achei estranho pois foi alto o barulho, parecido com aquele que ocorre quando engatamos a primeira marcha, entretanto tudo parecia estar funcionando normalmente e fui seguindo em frente e deixando a praça do pedágio desaparecer na escuridão. Quando atingi a última marcha percebi que não havia acendido a luz que indica que a sexta está engrenada. Pensei que talvez a lâmpada pudesse ter queimado. Dei uma batidinha com os dedos no velocímetro para ver se funcionava mas nada feito. Ainda rodei por algum tempo mas estava intrigado com aquilo e achei que deveria parar para ver o que poderia estar acontecendo. Quando apertei a embreagem a fim de reduzir para quinta o motor apagou, morreu. O farol e a iluminação do painel continuavam bem, mas o motor apagado. Ainda estava em certa velocidade pois estava exatamente reduzindo para quinta marcha, então ainda com a mão na embreagem fiz contato no botão de start para acionar o motor de arranque. A moto pegou tranquilamente e pude voltar a acelerar. Novamente na última marcha a luz não acendeu. Fiz o mesmo procedimento de redução e a moto também repetiu o que fizera antes: morreu assim que apertei a embreagem. Resolvi que deveria parar no acostamento como quase fizera antes. Apertei o botão a moto pegou e fui com ela no embalo até o acostamento. Reduzi todas as marchas até entrar o neutro. Soltei então a embreagem e o motor continuou ligado normalmente em marcha lenta. Achei que tudo estivesse bem e saí para a estrada de novo. Mais uma vez cheguei na última marcha e nada da luzinha acender. Apertei a embreagem para ver se a moto continuava ligada o que me indicaria que poderia ser apenas a luz queimada. Mas o motor novamente apagou. Voltei a ligar a moto e mais uma vez parei no acostamento. Durante algum tempo fiquei ali sentado na moto, ela ligada em ponto morto, pensando no que fazer. Eu era o único ser humano naquela local àquela hora da madrugada. O pedágio já tinha ficado bem distante de mim, eu já não conseguia nem ver a luzes das cabines. Muitas vezes, em diversas situações, usamos a expressão de que estamos apenas “Deus e eu”. Posso garantir que dessa vez realmente só estávamos nos dois por lá. Não dava pra ouvir nada além do som do motor ressoando na mata que acompanha a lateral da rodovia. Esse período em que estive sentado sobre a moto ali parada e ligada me pareceram longas horas. O que fazer, o quê? A decisão dependia só de mim, não havia ninguém mais ali. Se eu continuasse poderia acontecer algo pior, sei lá. Imaginei que aquele estalo que ouvi fosse algo de errado com a caixa de marchas e fiquei com medo de que ela travasse com a moto em velocidade e eu pudesse vir a perder o controle. Mas por outro lado eu não poderia ficar eternamente ali parado esperando amanhecer. A temperatura ambiente não era nada agradável, já fazia bastante frio. Eu tinha que fazer alguma coisa.
Hoje as motos são tão eletrônicas que pensei em agir como se fosse um problema daqueles insolúveis que vez por outra acontecem nos computadores e que só são solucionados quando damos um ”boot” na máquina. Resolvi arriscar e fazer o mesmo com a moto. Decidi que iria desligar o motor para “zerar” tudo. Eu tinha plena consciência de que ele poderia não mais ligar e eu ter de passar a noite ali, mas eu preferia esse risco ao da moto travar comigo em cima dela a mais de 100 km/h. Decidido girei a chave desligando o motor. O que vi a seguir foi um nada. Isso mesmo: um nada. Não via nada e não ouvia nada. Foi mais ou menos como um hiato na minha vida. Eu não estava em lugar nenhum, nada existia além de minha respiração e meu coração. E eu mesmo nem me via. Cheguei a não ter nem certeza de que ainda estava vivo. Era como se estivesse de olhos fechados e ouvidos tapados. Só era possível ouvir os sons que vinham de dentro, minha respiração e o fluxo sanguíneo produzido pelos meus batimentos cardíacos. Foi uma sensação muito forte e estranha. Difícil de descrever com a mesma dose de impacto e tensão. Acho que pela ansiedade de saber se a moto iria voltar a funcionar somada às condições naturais do lugar fizeram daquele momento um interminável vazio de tudo que conhecemos e sentimos. Ali eu era o tudo e o nada, eu era tudo o que existia ali mas ao mesmo tempo não era nada, não existia, muito estranho mesmo. O meu corpo ficou arrepiado por inteiro, uma sensação constante de intenso susto. Eu abria bem os olhos e não era possível ver nada, nada mesmo. Arregalava os olhos e não via nem minhas mãos, estava ali vivendo uma sensação totalmente inédita, surrealista, absurdamente inacreditável, muito intensa e forte. Absoluto silencio e escuridão total. Cheguei a me tocar para ver se realmente estava ali, vivo. Foram apenas alguns segundos eu acho, mas gigantescos segundos.
Tateando voltei a girar a chave da moto, o painel acendeu normalmente e o farol iluminou o planeta materializando a vida e me devolvendo a minha existência. Apertei o botão de contato e o motor da moto assumiu aquela batida descompassada característica das Harleys-Davidsons. O bichão é valente, não nega fogo. Saí e fui fazendo a troca de marchas, segunda, terceira, quarta, quinta e finalmente a sexta. Olhei para o painel e lá estava a luzinha verde com a forma do algarismo seis. Tudo havia voltado ao normal. Não sei o que aconteceu, acho que uma marcha pode ter “pulado” e por isso enganado o sensor da sexta marcha e como resultado disso o computador da moto ficou confuso alterando o comportamento geral. Mas o fato é que eu já estava novamente cortando o asfalto em direção ao centro-oeste do Brasil.
Assim que avistei a entrada de Promissão reduzi e virei em direção à cidade. Realmente logo apareceu um motel do lado direito. Parei na cabine de entrada e pedi que a recepcionista me informasse o valor para um pernoite. Fiquei assustado. Ela disse que teria de me cobrar R$ 95 e que como ainda não eram duas horas da madrugada ainda haveria uma taxa de R$ 20 o que transformaria o pernoite em R$ 115. Tentei argumentar de que era apenas um pernoite, que eu estava sozinho, mas ela me disse que era o único motel da cidade e que estava acontecendo um rodeio por lá, por isso esse preço. Agradeci dei meia volta e retornei ao meu objetivo principal: rodar com minha moto na direção de Bonito.
Dali até Araçatuba são 80 km mais ou menos. Certamente pela dimensão daquela cidade não faltariam ofertas de locais para pernoite, mas eu já estava meio que voltado a ir direto até a divisa.
Chegando em Araçatuba nem procurei lugar pra ficar. Faltavam apenas 160 km até Três Lagoas, primeira cidade do Mato Grosso do Sul. Ainda passaria por Andradina, última cidade paulista, mas nem quis saber, segui direto.



Passava pouca coisa das três horas da madrugada quando cruzei a ponte da eclusa da usina de Jupiá. Estava nos últimos metros do território paulista, prestes a entrar no centro-oeste brasileiro. Havia rodado naquele dia 18 horas direto fazendo um total de 1348 km em nove rodovias diferentes. Parei no primeiro posto BR, em frente ao Cristo da cidade, e abasteci a moto já visando a saída no dia seguinte. Cerca de 2 km adiante entrei no motel indicado pelo frentista daquele posto.



Acordei um pouco depois das sete e trinta. Saí direto sem café e uma hora e meia depois estava parado num posto saboreando uma tônica com um estranhíssimo pão de forma com manteiga. Claro que antes de tudo rolou aquele cafezinho no copo.



Dali segui em direção ao mais profundo centro-oeste brasileiro antes de se transformar em pantanal. Minha meta era Campo Grande, a cidade capital do MS.
As condições da BR 262 no estado do Mato Grosso do Sul me surpreenderam. Confesso que esperava uma situação bem pior. Apesar de ser uma estrada federal com pista única e em mão dupla, bate de dez a zero no asfalto da Marechal Rondon que se apresentou repleto de pequenos buracos e ondulações apesar da administração da Via Rondon e das quatro praças de pedágio em que fui obrigado a deixar R$ 15,60 no trecho de Bauru até a divisa.
Pode até ser que seja devido à ligação de Campo Grande com São Paulo, mas o fato é que foi uma agradável surpresa. Sinceramente se eu soubesse que a estrada estava assim certamente teria continuado e não teria parado para dormir em Três Lagoas. Mas agora pensando com responsabilidade, ainda bem que eu não sabia e parei.
Eu queria fazer uma surpresa para o grupo que já estava indo. O trajeto deles era cento e dez km maior que o meu, mas eles saíram um dia antes de mim. Imaginei que eles já estivessem bem na minha frente. Depois eu me dei conta de que na verdade o meu percurso é que terminou ficando ainda maior que o deles pois eu saí de Teresópolis que fica 100 km ao norte do Rio, no sentido oposto. E ainda teve a ida e volta por parte da linha vermelha o que representou um total de 30 km; ida e volta por toda a extensão da linha amarela, mais 50 km; e ainda a Av. Ayrton Senna e parte da Av. das Américas, tudo isso ida e volta. Assim eu é que terminei fazendo um trajeto maior em mais de 100 km. Por isso eu realmente achava que estava ainda bem atrás deles. Percurso maior e tendo saído um dia depois, só mesmo aquela minha aventura noturna para tentar chegar perto do ponto em que eu imaginava que eles estavam.



Eu me mantive constante, sempre a uma velocidade entre 100 e 120 km/h. Muito raramente ultrapasso os 120 km/h e se isso acontece é sempre por pouquíssimo tempo como uma ultrapassagem por exemplo. Não adianta ninguém tentar me manter acima dessa velocidade pois não me sinto confortável e reduzo logo. Quando estou sozinho então jamais passo dos 120 km/h e isso não contribuía em nada para que eu pudesse alcançá-los, mas por outro lado o fato de eu estar viajando sozinho fazia com que minhas paradas fossem bem mais breves e, ainda, o meu ritmo contínuo e uniforme favoreciam para encurtar um pouco o tempo de minha viagem.
Passei por Campo Grande antes do meio dia. Dei uma volta pela cidade apreciando a terra do meu amigo Alexandre Lacorte e depois de uma abastecida geral segui para a saída no sentido de Bonito.
De lá minha direção já não seria mais oeste, assumiria uma rota de descida em diagonal na direção sudoeste. A BR 262 já não era mais a via principal, já havia ficado para trás. Agora seria a BR 419, que faz parte do sistema da rodovia BR 060, estrada pela qual estava rodando naquele momento. Novo sentido novas referências. Até aqui Campo Grande era a grande meta, agora deveria seguir no sentido de Sidrolândia. Apesar da semelhança o nome da cidade não tem ligação nenhuma com a produção de sidra, deve-se ao seu fundador o Catarinense de Lages, Sidrônio Antunes de Andrade.
Depois da passagem pela pista que corta o centro da cidade a meta agora seria a pequena Nioaque.
No trajeto entre Sidrolândia e Nioaque vi vários animais mortos, atropelados, uma pena. Foram macacos, tatus, aves e até um tamanduá. Estava observando os enormes campos planos e com aquela plantação quase toda comprometida, ressentida pela recente ausência total de chuvas, quando vi que uma figura atravessava a pista em que eu ia passar. Era uma grande ave estranha com as pernas compridas e peladas, assim como seu longo pescoço. Ela vinha naquele compasso calmamente desfilando sobranceira, trazendo aquela expressão com um olhar de quem está espiando por cima de um muro alto. Entretanto toda aquela pose se desfez quando percebeu que por mais que eu tentasse não atingi-la eu não conseguiria evitar. Perdeu toda a altivez e desesperadamente batendo as asas sem eficácia alguma saiu apavorada correndo para fora da pista. Apesar do susto para ambos a cena foi muito engraçada. Mais adiante desviei de atropelar um tatu, mas esse foi fácil. Depois no abastecimento em Nioaque soube que aquela ave provavelmente se tratava de uma ema ou filhote de ema.

A chegada em Nioaque é curiosa: você vem pela estrada e chega numa pequena praça onde está o nome da cidade e mais nada. A estrada é interrompida por essa pracinha e depois dela há uma outra estrada em sentido transversal formando um T. Não há indicação nenhuma para onde se deve ir, se direita ou esquerda. Ou se arrisca ou, com um pouco de sorte, se pergunta se houver alguém ali por perto. Normalmente as cidades crescem em volta da rodovia, nesse caso não, a rodovia desaparece, é interrompida. E por coincidência ou não diz-se que Nioaque é uma palavra indígena que significa clavícula quebrada.

Cerca de 50 km depois passei pela cidade de Guia Lopes da Laguna que foi o ponto onde deixei a rodovia federal e parti em direção a Bonito pelos 60 km da estadual MS 382.



Cheguei na cidade por volta das três horas da tarde e fui direto me hospedar. Fiquei numa pousada com pequenos chalés muito legais. Logo que pude telefonei para meu velho amigo Diorlando que ainda estava no trabalho. Depois de instalado na pousada mandei-lhe um e-mail com duas fotos minhas na entrada da cidade. Ele entretanto nem imaginava que eu tinha ido para Bonito. Quando eu lhe disse que estava lá ele achou que fosse piada minha pois no dia anterior eu havia falado com ele de Teresópolis. Pedi então que ele verificasse a caixa de entrada dos seus e-mails. O que ouvi em seguida foi: - Você é um alucinado!!!! Alucinado!!!!



Depois de acalmar meu amigo que ainda não conseguia compreender como era possível eu num dia estar, ao meio dia, no Rio de Janeiro e no outro às três estar falando ao telefone de Bonito no Mato Grosso do Sul, saí para curtir o lugar. À noite quando já estava no chalé consegui falar com My Boy. Soube ali que havia chegado bem na frente deles pois eles ainda estavam pernoitando em Campo Grande. Resolvi não dizer nada que havia ido para Bonito. Ele me dizia que eu estava perdendo o passeio, que era tudo lindo e que eu deveria pegar um avião e encontrar com eles pois havia vaga no carro que acompanhava o grupo. Sem dizer que estava lá passei o endereço da pousada para que eles fossem se hospedar, menti dizendo que havia ligado para lá e já havia feito reservas para todos.
No final do dia seguinte apareceram por lá: My Boy, Maurício, Cláudia, Abud, Regina e Junior, e eu fui recebê-los na rua. Surpreso quando me viu ali em pé diante dele My Boy perguntou se eu tinha resolvido e finalmente ido de avião.
Eu apontando para minha moto parada na garagem do hotel disse:

- Olha meu avião ali!

No final nem foi realmente mentira porque depois daquele telefonema na véspera, quando então soube que eles ainda não estavam em Bonito, fiz mesmo as reservas para eles.